#1
que pintem uma aguarela sobre o mundo, que lhe disfarcem os incêndios, a terra queimada e a divinal ausência dos mitos. arruínem todas as formas de ruína, embrulhando as casas declinadas em aguarelas inigualáveis. quem pode negar o caos nesta ordem desmesurada? ninguém. que em cada canto de céu passem o pincel aguado do amor, traçando aí o fio condutor dos olhos indiferentes. que pintem essa aguarela de palavras cansadas, belas e hipócritas palavras, tão perfeitas, tão óbvias quanto o vazio oco dos ossos. tomem o mundo nos braços. se arranhar, passem algodão ensopado em água oxigenada sobre as feridas.
#2
nem quando todos os recém-nascidos forem baptizados com lama, amamentados a aguardente. a água benta destes rios parados, onde cada narciso escolhe o deslumbramento que mais lhe convém à morte, não comove ninguém. talvez os empresários da cortiça, as aves marítimas mergulhadas no petróleo ou os fundadores da nova paisagem industrial: refinarias no horizonte, a suster o que resta de um sol-posto às avessas. em cada igreja, um santuário, um santo usurário, a água podre dos domingos com fato e gravata. atestam as últimas análises o mergulho seguro. cuidado, de tão confundida com as margens essa água pode bem ser terra. e na terra nem deus mergulha.
#3
falemos de casas com janelas viradas para dentro. falemos de casas sem lados, casas redondas, casas vazias. falemos de casas que são ruas e ruas que são casas. falemos desse mendigo aconchegado à geada, da puta que pernoita atrás de um balcão de crimes potenciais. as casas dos poetas sem terra, sem lugar, dos lugares sem sítio, dos poetas sitiados. falemos dessas casas enfim expostas, imprimidas numa folha de papel, numa árvore abatida, na demanda do pulmão resfolegante. passeiam pelas casas e descobrem-lhes o nome, saltam à corda sobre a alcatifa dos jardins, medeiam os abrigos com poses recolhidas. são tão pobres as casas, tão sem beirais onde se faça o ninho.
#4
o poeta culto foi à televisão falar acerca da sua obra. vários engenheiros, de fato e gravata, já se debruçaram sobre a mesma. arquitectos confirmaram-lhe a ousadia. o poeta culto não sabe nada de poesia, não sabe o que isso seja, só sabe citar versos de outros poetas, longínquos poetas. nem lento nem parado, o poeta culto falou de poemas a acontecerem algures num lugar sem lei. enquanto falava, deus nosso senhor jesus cristo dormia pendurado nas paredes bolorentas da memória. moderno, o poeta culto baixava de vez em quando a cabeça à altura das mamas. ninguém o amamentou nessa infância perdida, agora queixa-se de solidão. nem parado nem lento, o poeta culto leu um dos seus poemas tantas vezes aparados nas arestas do silêncio. aproveitei para fazer como nosso senhor jesus cristo. em vez de o mandar à merda, fui dormir.
#5
venham ver sob que luz surgem os poemas, em que leitos navegam as palavras desabridas. venham ver a força desta corrente na rebentação da névoa. se entre as duas margens conseguirem avistar o que se esconde na neblina, então vejam como tudo baila sem que um único músculo se movimente.
#6
nada disto, absolutamente nada disto, tem que ver com poesia. isto é mais do domínio da presunção, o calor excessivo das armas íntimas. isto é como aquelas tardes que começam cedo a despedir-se do dia. uma árvore seca, uma lagoa choca, um pedregulho a desfazer-se em pequeninos grãos de areia. é o ínfimo do papel, a cinza. isto é, sucessivas ameaças de morte sucedendo-se umas às outras ao ritmo das páginas voltadas de um jornal diário. mata-se um líder, faz-se a guerra, regressa-se a casa para o jantar. nada disto, absolutamente nada disto, tem já que ver com poesia. só se for a crosta que fica do bombardeamento, o fumo que matiza o céu sobre nós caído, o sangue derramado em cada sombra. se ao menos pudéssemos atravessar as sombras, sentir-lhes a transpiração dos nossos anseios. mas nada disto tem já que ver com poesia. tarde demais. devolvamos ao mundo a sua sinfonia de arrendamentos. paguemos com o corpo a alma dos nossos ossos. em cada fio de transpiração, essa música de estarmos mais perto do estremunho com que pomos termo a todos os pesadelos.
#7
a morte não nasceu ontem. a pele encarquilhada dos pedregulhos é o seu bilhete de identidade, a poalha invisível que nos insufla o pulmão é o seu passaporte. de nacionalidade indefinida, a morte convive bem com os operários da palavra, com a medicina das balas, com o sortilégio da medicina. uma ambulância atravessa uma sirene aflita como se fosse um som mais rápido que a música da morte. a música das sirenes, dos alarmes, dos apelos. fora da morte, a escalada da violência aumenta na exacta proporção do medo. dizem que deus nasceu ali, naquele lugar onde tudo parece estar à mercê de um passo a mais para uma guerra sem fim. só há uma solução para o problema: deus cortar os pulsos e deixar chover sobre as nossas cabeças o seu sangue agitado. a morte não nasceu ontem. a morte há-de suicidar-se um dia destes.
#8
já ninguém se indigna com o que quer que seja. toda a gente tem perguntas a colocar, dúvidas a fazer, objecções a levantar. não haja dúvida, porém, de que já ninguém se indigna com o que quer que seja. houve um tempo em que a indignação se confundia com a ignição, agora ela é apenas o recheio de um saco de tempo perdido. talvez seja mesmo preferível uma metáfora, uma vestimenta distintiva, maquilhagem a condizer. talvez tenham razão e eu esteja equivocado. talvez seja preferível afundar a indignação no saco, aconchegar as costas ao conforto da poltrona e exercitar os dedos num teclado. façam-se weblogs disso, corredores por onde passear a maça inerte da nossa agonia. afinal, no final o vómito terá todo a mesma cor. teremos todos um ar muito respeitável na hora da nossa morte.
#9
as vértebras são um elemento essencial na personalidade das pessoas. a postura diz muito das pessoas, a forma como colocam os pés à frente das costas e a barriga acima da testa. um endireita é, antes de mais, um tratador da alma. a cor bege fica mal às pessoas decompostas, sobretudo se tiverem dores nas costas. as pessoas com dores nas costas são como os filhos da puta, aprendem mais depressa que as mães. gilles deleuze e félix guattari bem avisam: as bandeiras, as nações, os exércitos e os bancos fazem tesão a muita gente. às vezes fazem tanta que inflamam o músculo. um músculo inflamado é como um deus curvado. não é metáfora falar assim. é bem real a constatação do lugar dos ossos nestas matérias. diria mesmo que há pessoas que estão para os ossos como os ossos estão para a história. o que falta é arqueólogos, gente que reconstrua os sinais da invídia. sabes o significado da palavra invídia? se fores ver ao dicionário, não vejas nos da porto editora. lá aparece inveja, mas na realidade invídia quer apenas dizer músculo inflamado.
#10
os alarmes disparam sempre que o vento regressa. as mulheres vão para casa, carregam os sacos das compras e os filhos, com os pés inchados e o ventre desavindo. abre-se uma fenda no céu, uma trovoada que dança e ilumina as sombras das casas. tudo arde, tudo se esfuma, tudo se apaga. as lágrimas do sol já escorregam sobre o vidro das janelas, as mulheres fecham as janelas, os filhos ligam-se a um mundo a cores e bonecos animados. o cão muda o canal inadvertidamente. as crianças emudecem, as mulheres também. lembram-se de repente que são mães e que têm os maridos no mar. prantos que o vento traz à costa, marés de ir e não mais voltar. afundam-se na ausência dos maridos, afundam-se os maridos e as crianças mudas. nenhum barco regressa ao porto de onde partiu. as lotas estão encerradas. o coração anónimo dos filhos também.
#11
os poetas não importam, the poetry does not matter, nem mesmo eliot, varinas de sonhos. importam os aparadores de relva, os moinhos parados, as velas rasgadas, as aldeias tão abandonadas quanto as igrejas de tonino guerra, os fabricantes de bombas, os atiradores, os corpos dos civis em alvo, a carne dos civis a escudar as balas e um turista verde a ler o jornal no mar morto. mar morto, morto mar, de onde nenhum barco regressa. importam os cantoneiros emigrados, os sítios onde outrora se fazia pão. o pão não importa. apenas extravia. o pão sem sal, o bolorento, o pão caseiro, o pão de leite, o pão de rala, o pão torrado, o pão de forma. o pão deforma o estômago, o pão agoniza, o pão macilento que deus amassou. clochards de espírito inchado, a barriga cheia com o pão que o deus amassou, os poetas não importam. ginastas coxos de um torneio metafísico, ele disse, os poetas na curvatura das vidinhas íntimas, privadas, singulares, bufando a primeira pessoa a cada oportunidade. protejam-se, ele disse. vem aí mais um poeta. sabe tudo, certo de tudo, firme em tudo. abram-lhe a porta. abram a porta ao poeta. ela não importa.
#12
somos do tempo das heranças, do património genético, somos do tempo das potencialidades, somos do tempo da potência estática, do tempo da manipulação, somos do tempo em que a cada dia uma palavra ganha novos sentidos, significados, somos do tempo das semânticas em permanente reconstrução, das gramáticas vindouras, irrespiráveis, somos do tempo das trovoadas paradas, dos relâmpagos reconstruídos em frames microscópicos, das ideologias súbitas, dos fuzis suspensos, somos do tempo dos planetas dependurados, dos mundos singulares, das sociedades abertas, somos de um tempo a cada segundo feito de história, de um tempo a cada história feito de um segundo, do tempo da história feita ao segundo, somos do tempo interrompido pelos toques polifónicos, do tempo das fodas polifásicas, do tempo das intempéries, dos destemperos, da intemporal imediação das horas, somos do tempo em que ainda já se faz tarde.
#13
já nada perguntam, as nuvens. não têm dúvidas. só o céu que por elas passa, de quando em vez, se interroga sobre as árvores caídas. onde farão os pássaros seus ninhos? em que árvores pousarão seus cantos? em que cantos pousarão seus rituais de amor? como eles, os desterrados. cada vez mais próximos da terra, os pássaros parecem agora gafanhotos. cada vez mais enterrados, os homens parecem agora toupeiras. porém, desterradas toupeiras. a cada ser responde o declínio com uma fatia a menos de ar. os homens puxam das orelhas seus mp3 terapêuticos. puxam e puxam e puxam, até que no lugar dos auscultadores surgem tímpanos inflamados. os homens têm os tímpanos nas mãos. nada escutam, nada ouvem, ensurdeceram como as nuvens que já nada perguntam. desterrados são os homens sem dúvidas. os nossos, os de agora, desterrados como as nuvens.
#14
o vento a bater nos estores de plástico é, de certa maneira, um vento plástico. uma criança a brincar no corredor da memória é já só uma lembrança. uma porta metálica de correr a ser fechada envia os homens para o sítio metálico de tudo aquilo que se fecha. um sacho a lavrar o alcatrão, martelos batidos contra o ar, ferro quebrado de ossos e o vice-versa insuportável da poesia. há homens que se definem apenas pelos erros que são.
#15
escreviam weblogs como se grafassem na pedra os sinais de um passado ainda por vir. uma rede de pedra, como outrora de pedra foram as redes que capturaram a memória dos homens. a esses mortos sem nome eu brindo, a esses fantasmas de um sangue sem corpo, a esses terroristas eu brindo. o que resta deles é a vontade de uma ilusão, a irrepetível circunstância de um sonho. foram breves, mas ainda ecoam seus desastres insurrectos. a eles brindemos com mais um golo de sangue sem corpo, nesta hora em que nossos gritos se fazem calados, nesta hora em que nosso submerso silêncio se reduz por dentro de uma nublada sinfonia de ruídos cruzados.
#16
terrível é olhar a mulher grávida dormindo, sua serena mão aconchegando o ventre, e não poder deixar de pensar: dentro de momentos, esta imagem autodestruir-se-á. terrível é olhar uma mãe morta. terrível é ver a criança nascida, embalada pela respiração da mãe, com suas pequenitas mãos adormecidas sobre o peito materno, e não poder deixar de pensar: guarda este instante, pois dentro em breve ele será mero fragmento da arte de esquecer. terrível é ver uma infância morta dentro da maturidade.
#17
às vezes o coração pára. subitamente acelera. sempre que os cães uivam, o coração pára. sempre que os grilos cantam, ele acelera. as crianças já não caçam grilos, nem se comovem com o uivo dos cães. matilhas de cães abandonados, famintos. cães quase lobos. as crianças já não coleccionam bichos de seda. mas que raio de colecção para uma criança fazer. às vezes o coração pára. o insomníaco uivo dos cães obriga-o a parar. mas logo subitamente ele acelera. basta que escute os grilos. nada confirma o sacrifício irradiante que acontece entre o momento de às vezes o coração parar, para logo de súbito acelerar. há uma monotonia neste mecanismo que atravessa todas as coisas que vivem desta maneira, uma monotonia universal. não digamos apenas coisas. digamos que talvez seja já o homem que há nas crianças a respirar. talvez o penúltimo dia de um grande abraço.
#18
yeshayahu leibowitz nos dedos de korin. [a alma dos obstáculos intimida-nos. os gritos não têm pronúncia. declamamos a indignação dos vivos perante a indiferença dos mortos. danças, balanças, descansas no colo de um sopro divino. tens uma esperança miudinha, viras-te do avesso: apontas aos outros os defeitos das tuas virtudes.] yeshayahu leibowitz no colofón de tolstoi. [impõe-se-nos corpos decepados na textura da página. para morrer basta respirar. projectos atirados contra a parede, palavras encerradas no acto de escrever, cuspo nas palavras. a cidade aguarda o momento ideal para mais uma consignação de escravos]. yeshayahu leibowitz na incógnita de uma espera. [os dias olham-nos de esguelha. as palavras dos outros lembram os teus cabelos nas mãos perdidas de 98. diários queimados na fogueira dos debates. se os visses choravas. não sabem nada, os porcos, que não seja cacarejarem lá do alto a vaidade miudinha das acusações. algumas imagens desarticuladas. o indicador sobre os lábios e o polegar por baixo do queixo. tal como no dia em que escreveste : yeshayahu leibowitz : no último postal que enviaste]. que ainda vivas nesse canto do inferno.
#19
de novo os livros no chão, velhos, pisados, corroídos. as estantes desarrumadas da memória, os ângulos ausentes, as fotografias dobradas pelo calor das recordações. lá fora chove sobre o sol uma chuva de fogo, cá dentro arde sobre os oceanos uma bétula de esperança. o vento arrasta as chamas e no seu rasto seguem os homens, ardidos pelo suor do desespero seguem os homens no rasto do vento. contornam o mato com mangueiras pesadas, amansam a boca do inferno com carícias líquidas. tudo porque já não suportam ouvir as sirenes, tudo porque já não suportam carregar aos ombros o limbo da terra. neste mar de chamas ninguém mergulha, neste mar de chamas só navega uma morte desesperada. falta o sal a este mar. e como elas dançam, como elas dançam a música das sirenes. as chamas dançam a agonia dos pinheiros, as chamas dançam o murmúrio da ineficácia, as chamas dançam os suspiros da política preventiva, as chamas dançam as espáduas do negócio. de novo os livros no chão, velhos, pisados, corroídos. as árvores. as fogueiras.
#20
os ameaçados calam-se. concentram-se nas tripas e omitem, fingem não saber, olham para o lado. sabem tudo, vêem tudo, regam teorias com o cuspo das palavras. falam em demasia aquilo que calam. os ameaçados plagiam as horas com fintas cheias de estilo. preferem votar à ignorância o que julgam estar ao seu alcance. eles não entendem o quão rasteiras são as suas vidas, que aos répteis foi atribuído o dom de: arrastar o corpo sobre a própria porcaria. envolvem tudo num véu discutível e dizem sim ao flash, para à mesa discutirem com a família o ângulo perfilado de medo. engraxam os sapatos, por isso sujam os dedos. vestem o melhor fato, frequentam casas de chá, pedem uma cerveja ao fim da noite e suspiram por fim o desgosto de estarem tão sós no seu rasteiro caminho. gosto dos ameaçados, quem mais lembra a ditadura do esquecimento. gosto de os ver perdidos, como cães cegos, tropeçando nas escadarias da vaidade.
#21
as estantes estão cheias, a cabeça cheia de pó, o chão desarrumado. não admira que os pés tropecem, que a cinza ameace o céu limpo. todo o azul celeste mete medo, todo o mar. caminham por dentro dos músculos as notícias, o futuro antecipado, as previsões metrológicas. (sic) ao carpir das sirenes, os homens chegam-se às varandas. abrem os estores, dilatam as pálpebras, olham por cima dos pijamas os lençóis da cama onde pernoitam arrumados. costas com costas, pobres cães vadios, esperam a hora de ir para os empregos. perfumados. trabalham o cansaço, uma dor na coluna vertebral, aquele ouvi dizer que sabia como quem traz presentes para casa. uma consola para o menino, um adereço para a barbie. fazem flexões, alongam os músculos, esticam os ossos como quem estica os cordões à bolsa, o estendal de pendurar a alma todos os dias, à mesma hora, até que o coração diga basta. a um canto, o grito incita a fome: gostamos dos aranhiços, das pulgas, das infiltrações. única distracção no caminho das horas.
#22
os mortos falam à luz da neblina, a injustiça com que se lhes faz justiça. não entendem os púlpitos, as leis, os altares onde o juiz sacrifica as crias. em tribunal, os mortos aparecem dentro dos fantasmas que são pronunciados. não vivemos sem as condenações, dizem. e não esquecem que às convenções cabe garantir a sua vontade de prevaricar. os mortos não analisam vestígios, deixam amiúde um rasto que importa reconhecer. uma passagem para o campo das teses, um paradoxo, os dilemas indispensáveis à denúncia da desvergonha. há os que ladram, enquanto ameaçam a escatologia do direito. há os que uivam, e nem por isso admitem a restauração do medo. e há, por fim, os que resistem. não cedem à tentação que seria ressuscitar, dentro da morte, a condenação que os levou da terra.
#23
nem os cães ladram assim, mercenários de bolsas antigas. nem os cães por um osso descarnado. um vírus que se transacciona por cima da mesa, horários. quem assim discute o tempo, a bolsa das horas, propaga a cruz de estarmos vivos. quantas horas faltarão para que todas as horas estejam cumpridas? ninguém luta assim pelo que não tem, suicidas. quem se ausenta, para no mesmo instante de se ausentar comparecer diante dos juízes, não sabe que a cada tiquetaque os ponteiros se escusam. prisioneiros da fome, enchem de ar as barrigas. ao fim do dia caem fatigados nas passadeiras dos ginásios. quem assim? sem praia, sem horta, são o rosto calcinado de uma folha morta. adormecem todos os dias para no dia seguinte discutirem os dias que hão-de vir. não sabem, desconhecem, preferem não saber, que daqui a nada os relógios pararão para sempre. até lá, à saúde de estar doente.
#24
o rapaz levanta-se todos os dias à hora de se deitar. bebe as primeiras cervejas ao pequeno almoço, lê A Bola, fuma um cigarro, escangalha os dentes. olham para ele a modos que desconfiados, levantam os narizes por cima das páginas, aguardam que pague e saia. são horas de ir trabalhar as urzes do pulmão, indicar vagas ao corrupio, sacar moedas do chão calcado pelo óleo das botinas. no canto da tremura, enrola o alívio e espera, aguarda, espera a guarda. sabe que daqui a nada terá um sabre dentado às costas, um chicoteio de pó, dois braços engessados pela agonia. o rapaz regressa com o cimento todo parado nas pálpebras, conjuntivites várias, uma ordem para expor individualmente os quadros da sua arte no teatro da família. o pai sossega-o, diz que o frio está quente. a mãe trabalha-lhe um emprego, uma ocupação, crendo com isso minorar-lhe o esforço de viver. o rapaz repete-se todos os dias, rapa a paz à família, compete com o lixo, um desaguisado de estás a olhar para quem. ao espelho, ajeita a gravata às veias. depois adormenta-se.
HMBF dixit
07 setembro 2006
29. livro do despejo
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