29 março 2006

23. A Razão da Testemunha


Não vos causa estranheza a designação «testemunha presencial»? O que é que isto é suposto definir: um tipo que estava fisicamente presente num local onde se deu uma ocorrência, não? Ora isto significa que quem não estava fisicamente naquele local quando se deu a concorrência é uma «testemunha não presencial». Cheguei à conclusão que sou uma testemunha não presencial de milhares de atrocidades e isso deixa-me preocupado. É que esta condição de testemunha não-presencial coloca-me na eminência de qualquer dia ser intimado a comparecer num qualquer tribunal algures no mundo, para testemunhar não presencialmente um crime qualquer, o que convenhamos não dá muito jeito, principalmente se tiver que fazer várias escalas.
A outra designação dúbia é «testemunha ocular». Isto supostamente define alguém que é uma testemunha presencial e que ainda por cima viu tudo o que se passou em determinada ocorrência. Ser «testemunha presencial» não é o mesmo que ser «testemunha ocular»? Ou também há «testemunhas auriculares»? Curiosamente nunca ouvi ninguém falar nas testemunhas auriculares, aqueles tipos que estão no lugar da ocorrência mas que por qualquer motivo não olham para ela. Não olham, pronto. Não gostam de olhar para aquelas porcarias. Mas ouvem. Ouvem tudo. Não serão estes gajos testemunhas auriculares?
Isto leva-me a pensar que podem existir «testemunhas não presenciais auriculares»: tipos que estão longe da ocorrência mas que conseguem ouvi-la. Esses tipos são considerados legítimos? Mesmo que o pai seja incógnito? Não faço ideia.
Mas onde a coisa se baralha mesmo é com aqueles gajos que estão longe da ocorrência e no entanto estão a olhar para ela com um par de binóculos. São as «testemunhas binoculares». Estes nem são presenciais nem auriculares (porque estão longe demais para ouvir o que quer que seja). Poderão estes gajos ser levados a sério num tribunal? Espero bem que não. É que eu todas as noites sou testemunha binocular das excêntricas actividades nocturnas de uma vizinha jeitosa, e não me dá jeito nenhum ir parar a um tribunal.


Humor Negro dixit

27 março 2006

22. n.



não mudou nada. nem as folhas que jaziam. sobre a jarra. dentro da árvore. nem a água. dentro da terra. se escapou para o mar. nem o azul dourado amanheceu e fez o dia. nem a escuridão fez a noite como antes. quando ainda dormíamos. repito. quando ainda dormíamos. repetindo. contando as vezes que roubávamos ar. ao ar. repetindo. ar. ao ar.

se te contar. que já escrevi sobre este mundo. e não encontrei. uma única pedra para atirar. os braços mentiam ao corpo o movimento. e só me saía fuligem pelos olhos. ao alvo morto ao longe. e não soube o nome de ninguém. e não cheirei nenhuma flor. e não provei o sal. nem sei ao que sabe. e não beijei nenhuma mão. árida e seca. e não sei o que é ser. árido e seco. e penso e julgo. que ser árido e seco. é ter uma vida. virada para dentro. e ali. no dentro. tudo se consome. o ar. a terra. o amor. e a saudade.

se te contar. que não mudou nada. que os cães ainda andam soltos. a morder as pernas de quem quer andar. que a poeira se agarra ao rosto. e com o suor. se transforma noutro rosto. e nos engole. que as mãos que transformam a terra. em tudo. estão cansadas. e sós. e à tua espera.

e não mudou. nada. se o nada não é tudo e se o tudo. é nunca.

nunca é nada.

n. de nada.



joão dixit

21. DENTIÇÃO INCOMPLETA


*o amor é tudo – excepto o que deveria ser * luísa monteiro


comíamos nêsperas maduras sentados no muro
ensolarados de tanto abismo lá em baixo
de tanto sol lá em cima de tanta doçura de frutos e de tantos dentes de morder frutos e línguas de chupar sumo de frutos maduros e tu
: à noite sonho com peixes e abismos de mar e ventres de mulher e brancuras de beijos de mulher e filhos peixe de ventres líquidos de mulher
mas
sabes, a noite tem pernas curtas como a mentira
a morte
vem sempre primeiro como uma manta de papa e dedos ásperos
o tempo nunca chega e é sempre como o sumo
a escorrer
às vezes doce
às vezes só maduro
e sobra sempre tudo que é a morte.
a minha canta-me
dorme meu menino de oiro e até parece dois olhos grandes e umas mamas de leite branco
quente quente, mas não é, não é,
e, sabes,
nunca fiz um filho
nunca nunca
fiz um filho

e eu
: quando eu morrer quero ser cremada e soprada em cinza de ramo de nespereira maltratada. sabes
as nespereiras mais maltratadas
dão as nêsperas mais doces
e tu
:cuspo sempre caroços grandes grandes demais para a minha boca
e o céu da boca fica maltratado de tanta semente
assim
gorda
como palavras doces e inchadas à procura de nome

dizes
: nunca nunca fiz um filho
ainda assim
sonho com mamas grandes de um leite branco
e abismos que são ventres líquidos de mulher
e têm dentro peixes com olhos
exactamente iguais aos meus. estranho
o nome de uma mãe
desenha-se na minha boca quando chupo desse leite
branco
e nado nesse ventre líquido ao lado dos peixes
com olhos exactamente iguais aos meus. mãe? sim?
nada, não é nada.

eu
:sei que a
minha morte tem a minha cara e o nome que
não me dei e a minha própria boca cheia até ao céu de palavras
doces
inchadas de todos os nomes
excepto os que deveria ter
por exemplo
:amor.
que é quase tudo
excepto o que poderia ser.


primeiro:
está frio. e é noite. está tanto frio que me doem as letras nas articulações entre parte de
uma palavra e
outra.
frenéticas de dedos e pensamentos mancham a noite. a fingir de dia. o meu gato também finge
cloacas à noite
em equilíbrio sobre os muros de paredes estreitinhas
corre e não corre
e dá-se em fodas tão fingidas como estas palavras

(invento-me. e sobra-me sempre tudo)

para afugentar a pretidão da noite
a pretidão

o olho do cu do meu gato é um enorme vazadouro de pretidões e ele importa-se lá
foder
é para nós
que não somos gatos e temos cloacas ou olhos de cu
e medo da morte.
neste janeiro em março
oiço-lhe um longo miado.
enrabada na noite
a morte que dele espreita sai com passinhos leves
não faz um filho
não
não precisa.
a herança de um gato é sempre a própria morte
simples
branca de leite e quente quente. pequenina.
a minha
não. a minha morte é enorme como dois olhos vazadouros de palavras sem nome. e peixes com bocas cheias de palavras tão sem nome como as minhas. por exemplo
: o tempo do tempo todo
escorre-me dos dedos
como as nêsperas em sumo nos escorrem
sentados
ensolarados e
cheios de abismos com mães por dentro

mãe?
sim?
nada, não é nada

segundo:
o mar. ecoa contra as arribas desta terra
aqui
e dá-se em orgasmos de sal que se colam às janelas da nossa casa corredor. contemplo
esse som colado ao vidro e sei que é por causa do sal
suor cuspo lágrimas tudo
de tudo
que o vento é maresia
: sinto o meu ventre como maré de mar
que vai e
vem. em ondas de tempo salgado e luas e sóis e ainda outras e mais luas e
outros e mais
sóis. o meu sexo incha e dá-se
em águas salgadas
e em palavras que me escorrem pelos dedos como filhos
peixes maduros
de olhos exactamente iguais aos meus

mas
nunca nunca fiz uma palavra que fosse um filho teu maduro
ainda
de doce e nome por dizer

e do amor sobra-me sempre tudo – excepto o que deveria escrever

por exemplo: tenho todo o tempo para te dar
e

se escrevo é para inventar esse abismo em que
as águas da minha morte se separam.
por cima um céu de boca a escorrer sumo
por baixo um imenso olho em que a terra se abre
como um ventre líquido de mulher
com mães por dentro
e
a morte é apenas mais uma parideira
da minha noite noite e da minha noite dia


caminho por cima das águas e os dedos
gritos prolongados de gaivotas
são apenas asas curvas e ponteagudas que furam a própria pretidão

mãe?
sim?
nada, não é nada

terceiro:
sabes que usa uma espécie de cola que mantem os dentes falsos na boca
para quando falar mentir
com todos os dentes que tem no céu
da boca?

a dentição incompleta e por cada falsa
verdade um pensamento é arrancado à terra límbica que são os céus todos líquidos de uma mulher por dentro. acorda, vá, o veludo listrado de esperma vermelho
do sofá
grita em mãos e em bocas: que será que acontece ao tempo todo ao tempo
de tudo
quando já não temos dentes de morder e deixar que o sumo escorra
pelos cantos da boca cloaca mundo todo? é assim

a minha boca como o tempo todo esvazia-se e fica só um céu por cima e águas que já não se separam
e onde o branco branco
quente
é o teu e me escorre em não palavras em não nomes
e o tudo que é
excepto o que deveria ser


anda
vamos lagartear ao sol e deixar é cair uma parte de nós
essa que é tudo o que deveria exactamente ser
como cometa lagartixa e
rir
que a cauda de uma lagartixa cresce ainda que arrancada
quem me dera que o amor fosse assim, digo
pois, dizes,
um tempo esperma vermelho
de mãos e bocas
caudas cometas de lagartixa e miados
de gritar e foder a morte


quarto:
meu homem, diz lá
se te comer do pão com a boca toda e te beber
três vezes do vinho
com a boca de dentes toda
achas que vou direita ao céu da boca do teu amor?
sei lá,
depois de sonhares abismos as águas entram pelos olhos
e desatam-se em palavras sem nome
e nunca mais o amor é assim uma espuma como a do mar
leve
leve
tão leve que em tempos certos até pode voar

achas que o amor que é tudo
e mais essa palavra sem nome
pode voar-me por dentro?
não, o amor é tudo excepto essas asas nos pés. tem pés de chumbo e
puxa-te para uma pretidão tão preta que nem a ti
própria reconheces. não se dá em nomes
não conhece o teu rosto. anda por lá
meio às cegas e de vez
em quando
desata-se na tua língua
desfaz-se na tua pele como outrora a espuma de mar
e
tu cais lá dentro e é como um ventre fecundo
sempre a parir dias sempre a parir noites e
depois nunca mais caminhas a não ser agarrado a esse chão
voas, se calhar voas, mas é rente, sempre rente
à cova que os teus pés marcam
porque é assim como morrer
só que antes do tempo
antes do tempo todo do tempo

olha, uma cauda de lagartixa a caminhar sozinha.
é.


último:
estou só
com o meu gato de cloaca fingida estou só
e está frio e doem-me as articulações entre um pensamento
e uma palavra sem nome. doem-me as carnes em que os pensamentos à procura de nome
se dão em palavras e dói-me o meu sexo
inchado de tanto pensamento.

a avó dizia: veste a cinta, menina, aperta as carnes
e eu:
as minhas carnes crescem no exacto ponto em que a minha cona ainda ratinha de pelo penugem
deixa ver as entranhas do meu tempo
as minhas carnes é uma nêspera ensolarada e abismada
de sumo a escorrer pelos cantos da boca céu
e a sobrar em filhos de palavras sem nome
e filhos de homem
que não é o meu


chego-me ao meu homem de cheiro a meu homem e quase
sinto o cheiro do meu futuro tempo. mordo-lhe na boca um nome
para esta palavra sem nome.
o seu sangue tinge-me a noite e
separa os abismos do tempo. o meu ventre
líquido de todas as mulheres
dá-se em espuma
sim
leve
leve com sapatinhos de cristal que até podem fazer voar
e eu
digo vem
faz-me o amor em letras de carne
e dá-me
um nome porque


está frio. frio de orvalho que pinga não pinga nos beirais da nossa casa corredor e penso que tenho para aí oito anos e de pernas nuas e saia rodada sinto um lagarto descer pela roda ó i ó ai e não sou a carolina
mas estou do lado de cá do muro de parede estreitinha e os meus irmãos a gritarem
anda lá ó cagarolas ovo podre

oito infinito
par de olhos que espreitam a minha ratinha de pelo penugem e um fiozinho de sangue que é todo o tempo que havia nesse tempo
e não menstruo
sou uma menina que não corre e está em frente a um muro de parede estreitinha e alta
muito alta

gotas de minúsculo sangue caem nos abismos da cloaca terra e
o futuro é o meu sexo amadurecido como uma nêspera maltratada
(são sementes pequeninas, meu senhor, são sementes)
e com a boca cheia cuspo dias e cuspo noites
sementes de pretidão tão preta e tão pesada como cobertores de papa

o meu sexo não tem nome. mas poderia até ser gato.
ou ter o teu. de homem com cheiro a meu homem

deste outro lado do muro imagino até que posso ter oito anos e corro pelo muro em equilíbrio atrás dos meus irmãos
anda lá cagarolas o último a chegar é um ovo podre
e as pernas nuas e não uma saia mas um lagarto a comer
me
o sangue e não menstruo é apenas um joelho esfolado
ou uma ferida de tempo no tempo
ou um futuro de filhos a escorrerem
entre as pernas e

Mãe?
Sim?
Nada, não é nada

o meu homem cheira a meu homem e dorme ao meu lado
nesta pretidão da noite com roncos brancos de mar
e sangue e sal e cuspo e esperma de onda
de onda
do meu ventre abismo saem peixes de olhos
exactamente iguais ao dele
só que os dele estão escondidos atrás do sono
e nada, não é nada
apenas o tempo a roer
me
por dentro dos teus olhos que não vejo
das tuas mãos que estão enconchadas entre as tuas mamas
pequeninas
fingidas como mamas de mulher
mãe
o meu homem que imagino ser a minha mãe
e dar-me a beber o leite quente das suas mamas fingidas e colo
de mulher.
mas não. o sono dorme-o.

e eu
: não tens útero para tanto filho,
não tens.

e caminhas com os sapatos de chumbo
do amor

essa palavra sem nome
escreve-se torto pelas linhas a direito do
meu corpo

acorda
:quando eu morrer quero-me cinza no tronco
de uma nespereira
a mais maltratada e doce nespereira
depois
come dos frutos e cospe-me
em caroços
não sementes
não sementes
ao sol
ao sol


e anda lá, vem
amar-me ainda assim
ainda que na maior pretidão
a boca cheia até ao céu
dos abismos de peixes olhos
com o tempo a espreitar por entre a morte
e essa noite de muro de parede alta e estreitinha
:do lado de cá é o amor que é quase tudo-excepto o que deveria ser
:do lado de cá são os meus quinze anos
e menstruo
:do lado de cá o tempo todo que havia de haver nesse tempo todo e

finalmente
não parir-te um filho
antes
apertar-te entre as carnes do meu próprio nome

dizes
:perfilhar-te

que é tudo o que deveria ser. o amor.


blimunda dixit