dixit sic dixit

24 junho 2008

32. tornar-se


a pétala desdobra
sua canção acetinada
e rubra
contra o sol
a nascer dentro dela

torna-se uma rosa
quando me toca os olhos



silvia chueire dixit

15 abril 2008

31. s/ título


Lembro-me de naquele tempo não haver sequer vento, de não se agitar uma árvore lá fora e de haver um terraço apenas com roupa estendida e o cheiro do sabão espalhado nos tecidos. Lembro-me apenas de coisas mínimas. Do cheiro das laranjas que apodreciam no chão irisadas na luz que se entornava então sobre a terra. Lembro-me de naquele tempo sentir que cada palavra era uma distância. De sentir as coisas espalhadas no chão do meu quarto e de sofrer por só lentamente me poder aperceber de que tudo estava radicalmente só e dividido. Lembro-me, aliás, de naquele tempo ter dividido pela primeira vez as coisas do mundo: o chão e os frutos, as árvores e o céu, as ondas e o mar. Lembro-me de ter visto pela primeira vez o mundo representado nas asas de uma borboleta: cada asa é uma pessoa, murmurei, e cada borboleta é o pequeno prodígio de haver um mundo. Pensei que as asas de cada borboleta poderiam ser duas pessoas que ora se encontravam ora se perdiam para uma distância que na tensão da presença jamais poderia ser infinita. Pensei que o equílibrio de haver borboletas era justamente este ofício do encontro: no meio da borboleta estava o labirinto de haver um possível, de haver um animal sozinho na viagem das pessoas que o construíam para a sua morte. Não havia vento naquele tempo: as borboletas repousavam sem perturbações nos círculos de água da minha face. Lembro: cada asa tem o seu duplo como cada lábio tem o seu par, disse. Pela areia do sono descia ao fundo do meu coração e lembro-me, recordo-me muito bem de no interior do meu quarto ter construído uma margem de silêncio onde mais tarde entrancei o teu cabelo e casei o movimento dos teus pés descalços na areia das praias. De tudo isto fiz borboletas. Das ondas e do mar, do teu cabelo, dos teus olhos nos meus. Do teu corpo em ti própria. Cada borboleta regressa a si mesma como uma flor ao nascer da luz: fixando o sol, das asas nasce o animal e do animal nascem as casas, as palavras e o amor. Depois a borboleta faz uma escada para trás, para o seu deserto, para o fim do poema, para o fim de todos os poemas. Eu apago os passos: cada borboleta apaga então o que deixou pela areia: uma escama de luz, um pedaço de asa. E se chegou ao céu por voar, regressará a casa porque consegue pisar por amor o coração sem asas nem animal que lhe resta. Naquele tempo era tudo como me lembro hoje: a casa lá fora estava deitada sobre a luz, cá dentro não se agitavam as árvores e as palavras beijavam-se entre o silêncio. As coisas continuavam espalhadas pelo chão do meu quarto. E eu? Recomeçava, eu.

[24 março, 2008]



da. dixit

31 janeiro 2007

30. partida


Ardia o sol de Inverno no chão do Alentejo.
Chão de antiquíssimos arderes.
Chão de vermelhos de papoilas.
Vermelhos de sangues.
De lenços de moçoilas.
Escarlate de faces namoradas.
Alentejo que ardias em Janeiro
num céu azul que encandecia.
Azul tão puro e liso que doía.

Olhar que longe de ti te andava.
Olhar que em azul se desfazia.
No Alentejo ao início da tarde
o sol doía de doirado.

Em um Janeiro mal começado
doiravas mais o céu
tu que de viver partias.
No céu azul onde em Janeiro,
Inverno,
ardia o sol doirado no chão do Alentejo
e tu partias
brilhando de um viver que nos doía.


seilá dixit

07 setembro 2006

29. livro do despejo


#1


que pintem uma aguarela sobre o mundo, que lhe disfarcem os incêndios, a terra queimada e a divinal ausência dos mitos. arruínem todas as formas de ruína, embrulhando as casas declinadas em aguarelas inigualáveis. quem pode negar o caos nesta ordem desmesurada? ninguém. que em cada canto de céu passem o pincel aguado do amor, traçando aí o fio condutor dos olhos indiferentes. que pintem essa aguarela de palavras cansadas, belas e hipócritas palavras, tão perfeitas, tão óbvias quanto o vazio oco dos ossos. tomem o mundo nos braços. se arranhar, passem algodão ensopado em água oxigenada sobre as feridas.

#2

nem quando todos os recém-nascidos forem baptizados com lama, amamentados a aguardente. a água benta destes rios parados, onde cada narciso escolhe o deslumbramento que mais lhe convém à morte, não comove ninguém. talvez os empresários da cortiça, as aves marítimas mergulhadas no petróleo ou os fundadores da nova paisagem industrial: refinarias no horizonte, a suster o que resta de um sol-posto às avessas. em cada igreja, um santuário, um santo usurário, a água podre dos domingos com fato e gravata. atestam as últimas análises o mergulho seguro. cuidado, de tão confundida com as margens essa água pode bem ser terra. e na terra nem deus mergulha.

#3

falemos de casas com janelas viradas para dentro. falemos de casas sem lados, casas redondas, casas vazias. falemos de casas que são ruas e ruas que são casas. falemos desse mendigo aconchegado à geada, da puta que pernoita atrás de um balcão de crimes potenciais. as casas dos poetas sem terra, sem lugar, dos lugares sem sítio, dos poetas sitiados. falemos dessas casas enfim expostas, imprimidas numa folha de papel, numa árvore abatida, na demanda do pulmão resfolegante. passeiam pelas casas e descobrem-lhes o nome, saltam à corda sobre a alcatifa dos jardins, medeiam os abrigos com poses recolhidas. são tão pobres as casas, tão sem beirais onde se faça o ninho.

#4

o poeta culto foi à televisão falar acerca da sua obra. vários engenheiros, de fato e gravata, já se debruçaram sobre a mesma. arquitectos confirmaram-lhe a ousadia. o poeta culto não sabe nada de poesia, não sabe o que isso seja, só sabe citar versos de outros poetas, longínquos poetas. nem lento nem parado, o poeta culto falou de poemas a acontecerem algures num lugar sem lei. enquanto falava, deus nosso senhor jesus cristo dormia pendurado nas paredes bolorentas da memória. moderno, o poeta culto baixava de vez em quando a cabeça à altura das mamas. ninguém o amamentou nessa infância perdida, agora queixa-se de solidão. nem parado nem lento, o poeta culto leu um dos seus poemas tantas vezes aparados nas arestas do silêncio. aproveitei para fazer como nosso senhor jesus cristo. em vez de o mandar à merda, fui dormir.

#5

venham ver sob que luz surgem os poemas, em que leitos navegam as palavras desabridas. venham ver a força desta corrente na rebentação da névoa. se entre as duas margens conseguirem avistar o que se esconde na neblina, então vejam como tudo baila sem que um único músculo se movimente.

#6

nada disto, absolutamente nada disto, tem que ver com poesia. isto é mais do domínio da presunção, o calor excessivo das armas íntimas. isto é como aquelas tardes que começam cedo a despedir-se do dia. uma árvore seca, uma lagoa choca, um pedregulho a desfazer-se em pequeninos grãos de areia. é o ínfimo do papel, a cinza. isto é, sucessivas ameaças de morte sucedendo-se umas às outras ao ritmo das páginas voltadas de um jornal diário. mata-se um líder, faz-se a guerra, regressa-se a casa para o jantar. nada disto, absolutamente nada disto, tem já que ver com poesia. só se for a crosta que fica do bombardeamento, o fumo que matiza o céu sobre nós caído, o sangue derramado em cada sombra. se ao menos pudéssemos atravessar as sombras, sentir-lhes a transpiração dos nossos anseios. mas nada disto tem já que ver com poesia. tarde demais. devolvamos ao mundo a sua sinfonia de arrendamentos. paguemos com o corpo a alma dos nossos ossos. em cada fio de transpiração, essa música de estarmos mais perto do estremunho com que pomos termo a todos os pesadelos.

#7

a morte não nasceu ontem. a pele encarquilhada dos pedregulhos é o seu bilhete de identidade, a poalha invisível que nos insufla o pulmão é o seu passaporte. de nacionalidade indefinida, a morte convive bem com os operários da palavra, com a medicina das balas, com o sortilégio da medicina. uma ambulância atravessa uma sirene aflita como se fosse um som mais rápido que a música da morte. a música das sirenes, dos alarmes, dos apelos. fora da morte, a escalada da violência aumenta na exacta proporção do medo. dizem que deus nasceu ali, naquele lugar onde tudo parece estar à mercê de um passo a mais para uma guerra sem fim. só há uma solução para o problema: deus cortar os pulsos e deixar chover sobre as nossas cabeças o seu sangue agitado. a morte não nasceu ontem. a morte há-de suicidar-se um dia destes.

#8

já ninguém se indigna com o que quer que seja. toda a gente tem perguntas a colocar, dúvidas a fazer, objecções a levantar. não haja dúvida, porém, de que já ninguém se indigna com o que quer que seja. houve um tempo em que a indignação se confundia com a ignição, agora ela é apenas o recheio de um saco de tempo perdido. talvez seja mesmo preferível uma metáfora, uma vestimenta distintiva, maquilhagem a condizer. talvez tenham razão e eu esteja equivocado. talvez seja preferível afundar a indignação no saco, aconchegar as costas ao conforto da poltrona e exercitar os dedos num teclado. façam-se weblogs disso, corredores por onde passear a maça inerte da nossa agonia. afinal, no final o vómito terá todo a mesma cor. teremos todos um ar muito respeitável na hora da nossa morte.

#9

as vértebras são um elemento essencial na personalidade das pessoas. a postura diz muito das pessoas, a forma como colocam os pés à frente das costas e a barriga acima da testa. um endireita é, antes de mais, um tratador da alma. a cor bege fica mal às pessoas decompostas, sobretudo se tiverem dores nas costas. as pessoas com dores nas costas são como os filhos da puta, aprendem mais depressa que as mães. gilles deleuze e félix guattari bem avisam: as bandeiras, as nações, os exércitos e os bancos fazem tesão a muita gente. às vezes fazem tanta que inflamam o músculo. um músculo inflamado é como um deus curvado. não é metáfora falar assim. é bem real a constatação do lugar dos ossos nestas matérias. diria mesmo que há pessoas que estão para os ossos como os ossos estão para a história. o que falta é arqueólogos, gente que reconstrua os sinais da invídia. sabes o significado da palavra invídia? se fores ver ao dicionário, não vejas nos da porto editora. lá aparece inveja, mas na realidade invídia quer apenas dizer músculo inflamado.

#10

os alarmes disparam sempre que o vento regressa. as mulheres vão para casa, carregam os sacos das compras e os filhos, com os pés inchados e o ventre desavindo. abre-se uma fenda no céu, uma trovoada que dança e ilumina as sombras das casas. tudo arde, tudo se esfuma, tudo se apaga. as lágrimas do sol já escorregam sobre o vidro das janelas, as mulheres fecham as janelas, os filhos ligam-se a um mundo a cores e bonecos animados. o cão muda o canal inadvertidamente. as crianças emudecem, as mulheres também. lembram-se de repente que são mães e que têm os maridos no mar. prantos que o vento traz à costa, marés de ir e não mais voltar. afundam-se na ausência dos maridos, afundam-se os maridos e as crianças mudas. nenhum barco regressa ao porto de onde partiu. as lotas estão encerradas. o coração anónimo dos filhos também.

#11

os poetas não importam, the poetry does not matter, nem mesmo eliot, varinas de sonhos. importam os aparadores de relva, os moinhos parados, as velas rasgadas, as aldeias tão abandonadas quanto as igrejas de tonino guerra, os fabricantes de bombas, os atiradores, os corpos dos civis em alvo, a carne dos civis a escudar as balas e um turista verde a ler o jornal no mar morto. mar morto, morto mar, de onde nenhum barco regressa. importam os cantoneiros emigrados, os sítios onde outrora se fazia pão. o pão não importa. apenas extravia. o pão sem sal, o bolorento, o pão caseiro, o pão de leite, o pão de rala, o pão torrado, o pão de forma. o pão deforma o estômago, o pão agoniza, o pão macilento que deus amassou. clochards de espírito inchado, a barriga cheia com o pão que o deus amassou, os poetas não importam. ginastas coxos de um torneio metafísico, ele disse, os poetas na curvatura das vidinhas íntimas, privadas, singulares, bufando a primeira pessoa a cada oportunidade. protejam-se, ele disse. vem aí mais um poeta. sabe tudo, certo de tudo, firme em tudo. abram-lhe a porta. abram a porta ao poeta. ela não importa.

#12

somos do tempo das heranças, do património genético, somos do tempo das potencialidades, somos do tempo da potência estática, do tempo da manipulação, somos do tempo em que a cada dia uma palavra ganha novos sentidos, significados, somos do tempo das semânticas em permanente reconstrução, das gramáticas vindouras, irrespiráveis, somos do tempo das trovoadas paradas, dos relâmpagos reconstruídos em frames microscópicos, das ideologias súbitas, dos fuzis suspensos, somos do tempo dos planetas dependurados, dos mundos singulares, das sociedades abertas, somos de um tempo a cada segundo feito de história, de um tempo a cada história feito de um segundo, do tempo da história feita ao segundo, somos do tempo interrompido pelos toques polifónicos, do tempo das fodas polifásicas, do tempo das intempéries, dos destemperos, da intemporal imediação das horas, somos do tempo em que ainda já se faz tarde.

#13

já nada perguntam, as nuvens. não têm dúvidas. só o céu que por elas passa, de quando em vez, se interroga sobre as árvores caídas. onde farão os pássaros seus ninhos? em que árvores pousarão seus cantos? em que cantos pousarão seus rituais de amor? como eles, os desterrados. cada vez mais próximos da terra, os pássaros parecem agora gafanhotos. cada vez mais enterrados, os homens parecem agora toupeiras. porém, desterradas toupeiras. a cada ser responde o declínio com uma fatia a menos de ar. os homens puxam das orelhas seus mp3 terapêuticos. puxam e puxam e puxam, até que no lugar dos auscultadores surgem tímpanos inflamados. os homens têm os tímpanos nas mãos. nada escutam, nada ouvem, ensurdeceram como as nuvens que já nada perguntam. desterrados são os homens sem dúvidas. os nossos, os de agora, desterrados como as nuvens.

#14

o vento a bater nos estores de plástico é, de certa maneira, um vento plástico. uma criança a brincar no corredor da memória é já só uma lembrança. uma porta metálica de correr a ser fechada envia os homens para o sítio metálico de tudo aquilo que se fecha. um sacho a lavrar o alcatrão, martelos batidos contra o ar, ferro quebrado de ossos e o vice-versa insuportável da poesia. há homens que se definem apenas pelos erros que são.

#15

escreviam weblogs como se grafassem na pedra os sinais de um passado ainda por vir. uma rede de pedra, como outrora de pedra foram as redes que capturaram a memória dos homens. a esses mortos sem nome eu brindo, a esses fantasmas de um sangue sem corpo, a esses terroristas eu brindo. o que resta deles é a vontade de uma ilusão, a irrepetível circunstância de um sonho. foram breves, mas ainda ecoam seus desastres insurrectos. a eles brindemos com mais um golo de sangue sem corpo, nesta hora em que nossos gritos se fazem calados, nesta hora em que nosso submerso silêncio se reduz por dentro de uma nublada sinfonia de ruídos cruzados.

#16

terrível é olhar a mulher grávida dormindo, sua serena mão aconchegando o ventre, e não poder deixar de pensar: dentro de momentos, esta imagem autodestruir-se-á. terrível é olhar uma mãe morta. terrível é ver a criança nascida, embalada pela respiração da mãe, com suas pequenitas mãos adormecidas sobre o peito materno, e não poder deixar de pensar: guarda este instante, pois dentro em breve ele será mero fragmento da arte de esquecer. terrível é ver uma infância morta dentro da maturidade.

#17

às vezes o coração pára. subitamente acelera. sempre que os cães uivam, o coração pára. sempre que os grilos cantam, ele acelera. as crianças já não caçam grilos, nem se comovem com o uivo dos cães. matilhas de cães abandonados, famintos. cães quase lobos. as crianças já não coleccionam bichos de seda. mas que raio de colecção para uma criança fazer. às vezes o coração pára. o insomníaco uivo dos cães obriga-o a parar. mas logo subitamente ele acelera. basta que escute os grilos. nada confirma o sacrifício irradiante que acontece entre o momento de às vezes o coração parar, para logo de súbito acelerar. há uma monotonia neste mecanismo que atravessa todas as coisas que vivem desta maneira, uma monotonia universal. não digamos apenas coisas. digamos que talvez seja já o homem que há nas crianças a respirar. talvez o penúltimo dia de um grande abraço.

#18

yeshayahu leibowitz nos dedos de korin. [a alma dos obstáculos intimida-nos. os gritos não têm pronúncia. declamamos a indignação dos vivos perante a indiferença dos mortos. danças, balanças, descansas no colo de um sopro divino. tens uma esperança miudinha, viras-te do avesso: apontas aos outros os defeitos das tuas virtudes.] yeshayahu leibowitz no colofón de tolstoi. [impõe-se-nos corpos decepados na textura da página. para morrer basta respirar. projectos atirados contra a parede, palavras encerradas no acto de escrever, cuspo nas palavras. a cidade aguarda o momento ideal para mais uma consignação de escravos]. yeshayahu leibowitz na incógnita de uma espera. [os dias olham-nos de esguelha. as palavras dos outros lembram os teus cabelos nas mãos perdidas de 98. diários queimados na fogueira dos debates. se os visses choravas. não sabem nada, os porcos, que não seja cacarejarem lá do alto a vaidade miudinha das acusações. algumas imagens desarticuladas. o indicador sobre os lábios e o polegar por baixo do queixo. tal como no dia em que escreveste : yeshayahu leibowitz : no último postal que enviaste]. que ainda vivas nesse canto do inferno.

#19

de novo os livros no chão, velhos, pisados, corroídos. as estantes desarrumadas da memória, os ângulos ausentes, as fotografias dobradas pelo calor das recordações. lá fora chove sobre o sol uma chuva de fogo, cá dentro arde sobre os oceanos uma bétula de esperança. o vento arrasta as chamas e no seu rasto seguem os homens, ardidos pelo suor do desespero seguem os homens no rasto do vento. contornam o mato com mangueiras pesadas, amansam a boca do inferno com carícias líquidas. tudo porque já não suportam ouvir as sirenes, tudo porque já não suportam carregar aos ombros o limbo da terra. neste mar de chamas ninguém mergulha, neste mar de chamas só navega uma morte desesperada. falta o sal a este mar. e como elas dançam, como elas dançam a música das sirenes. as chamas dançam a agonia dos pinheiros, as chamas dançam o murmúrio da ineficácia, as chamas dançam os suspiros da política preventiva, as chamas dançam as espáduas do negócio. de novo os livros no chão, velhos, pisados, corroídos. as árvores. as fogueiras.

#20

os ameaçados calam-se. concentram-se nas tripas e omitem, fingem não saber, olham para o lado. sabem tudo, vêem tudo, regam teorias com o cuspo das palavras. falam em demasia aquilo que calam. os ameaçados plagiam as horas com fintas cheias de estilo. preferem votar à ignorância o que julgam estar ao seu alcance. eles não entendem o quão rasteiras são as suas vidas, que aos répteis foi atribuído o dom de: arrastar o corpo sobre a própria porcaria. envolvem tudo num véu discutível e dizem sim ao flash, para à mesa discutirem com a família o ângulo perfilado de medo. engraxam os sapatos, por isso sujam os dedos. vestem o melhor fato, frequentam casas de chá, pedem uma cerveja ao fim da noite e suspiram por fim o desgosto de estarem tão sós no seu rasteiro caminho. gosto dos ameaçados, quem mais lembra a ditadura do esquecimento. gosto de os ver perdidos, como cães cegos, tropeçando nas escadarias da vaidade.

#21

as estantes estão cheias, a cabeça cheia de pó, o chão desarrumado. não admira que os pés tropecem, que a cinza ameace o céu limpo. todo o azul celeste mete medo, todo o mar. caminham por dentro dos músculos as notícias, o futuro antecipado, as previsões metrológicas. (sic) ao carpir das sirenes, os homens chegam-se às varandas. abrem os estores, dilatam as pálpebras, olham por cima dos pijamas os lençóis da cama onde pernoitam arrumados. costas com costas, pobres cães vadios, esperam a hora de ir para os empregos. perfumados. trabalham o cansaço, uma dor na coluna vertebral, aquele ouvi dizer que sabia como quem traz presentes para casa. uma consola para o menino, um adereço para a barbie. fazem flexões, alongam os músculos, esticam os ossos como quem estica os cordões à bolsa, o estendal de pendurar a alma todos os dias, à mesma hora, até que o coração diga basta. a um canto, o grito incita a fome: gostamos dos aranhiços, das pulgas, das infiltrações. única distracção no caminho das horas.

#22

os mortos falam à luz da neblina, a injustiça com que se lhes faz justiça. não entendem os púlpitos, as leis, os altares onde o juiz sacrifica as crias. em tribunal, os mortos aparecem dentro dos fantasmas que são pronunciados. não vivemos sem as condenações, dizem. e não esquecem que às convenções cabe garantir a sua vontade de prevaricar. os mortos não analisam vestígios, deixam amiúde um rasto que importa reconhecer. uma passagem para o campo das teses, um paradoxo, os dilemas indispensáveis à denúncia da desvergonha. há os que ladram, enquanto ameaçam a escatologia do direito. há os que uivam, e nem por isso admitem a restauração do medo. e há, por fim, os que resistem. não cedem à tentação que seria ressuscitar, dentro da morte, a condenação que os levou da terra.

#23

nem os cães ladram assim, mercenários de bolsas antigas. nem os cães por um osso descarnado. um vírus que se transacciona por cima da mesa, horários. quem assim discute o tempo, a bolsa das horas, propaga a cruz de estarmos vivos. quantas horas faltarão para que todas as horas estejam cumpridas? ninguém luta assim pelo que não tem, suicidas. quem se ausenta, para no mesmo instante de se ausentar comparecer diante dos juízes, não sabe que a cada tiquetaque os ponteiros se escusam. prisioneiros da fome, enchem de ar as barrigas. ao fim do dia caem fatigados nas passadeiras dos ginásios. quem assim? sem praia, sem horta, são o rosto calcinado de uma folha morta. adormecem todos os dias para no dia seguinte discutirem os dias que hão-de vir. não sabem, desconhecem, preferem não saber, que daqui a nada os relógios pararão para sempre. até lá, à saúde de estar doente.

#24

o rapaz levanta-se todos os dias à hora de se deitar. bebe as primeiras cervejas ao pequeno almoço, lê A Bola, fuma um cigarro, escangalha os dentes. olham para ele a modos que desconfiados, levantam os narizes por cima das páginas, aguardam que pague e saia. são horas de ir trabalhar as urzes do pulmão, indicar vagas ao corrupio, sacar moedas do chão calcado pelo óleo das botinas. no canto da tremura, enrola o alívio e espera, aguarda, espera a guarda. sabe que daqui a nada terá um sabre dentado às costas, um chicoteio de pó, dois braços engessados pela agonia. o rapaz regressa com o cimento todo parado nas pálpebras, conjuntivites várias, uma ordem para expor individualmente os quadros da sua arte no teatro da família. o pai sossega-o, diz que o frio está quente. a mãe trabalha-lhe um emprego, uma ocupação, crendo com isso minorar-lhe o esforço de viver. o rapaz repete-se todos os dias, rapa a paz à família, compete com o lixo, um desaguisado de estás a olhar para quem. ao espelho, ajeita a gravata às veias. depois adormenta-se.


HMBF dixit

06 agosto 2006

28. (sem título)

1

lume
de secreta e líquida língua
nome
que procura a água de uma boca
ou
um lugar no corpo
que preceda em sede
o amor

: amo esse instante
a brevíssima pausa antes
da nomeação


2

sobretudo e ainda mais
um dia
arrancado palavra a palavra
a este poema

: sobretudo e ainda mais
o segredo de um nome
murmurado gota a gota
entre ti
e a distância
quase imperceptível
entre ti
e mim

sobretudo.
e ainda mais,
amor.


3

em dias como este
lentos
lisos
brancos e quentes
pela chaminé de casa sai um sussurro
um restolhar brando
quase de pássaros
quase de árvores
quase de flor

: cá dentro
o meu anjo
despe as suas asas
e um vento brisa se alevanta
nas planuras do meu ventre

a tua voz o riso manso dos teus olhos
os teus beijos de plumas e de sossego
crescem em mim como mãos
: no fundo que me é terra
filhos raízes desbravam-me os nomes
e copas cópulas de sol
e mar de marés
vêm ver morrer devagar
toda a água da boca
na praia dourada do corpo

(sob a tua língua
amado
eu escrevo vales
concâvos desejos
ou
promontórios de luas e pequenos segredos)


4

quando em abraços por fim
nos caímos
um do outro por fim
saciados
descem por meus olhos os ténues fios
que te hão-de crescer
em novas sedes
em novas águas

e tu
devagarzinho me alisas
a curva mansa destas lágrimas
com abraços longos
beijos e murmúrios apertados entre a carne
como a terra dá ao mar em dias assim
parados
muito parados
quase imóveis


5

não sei de hora mais hora em mim que possa
com o ir
e vir das horas e das marés
ser mais mar
mais outra coisa
que o amor em refluxos
de sal e onda
que o amar-te por sobre o dia
e por sobre o tempo do dia
que olhar o infinito do ir e vir
aqui
perante as ondas
perante o mar
e descobrir que sobram sempre
mais dois
mais dois
mais dois de sal e de marés
mais dois de sal e de marés
e de tempo que se desfaz noutra e ainda
mesma coisa
como areia da praia toda líquida
ou água de mar toda verde
que esconde em si todo o sol
e todo o azul
de céu
infinito

: não sei de outra coisa
amor,
que amar o mar e o amor
amar-te no mar
deste amor
e assim erguer o meu corpo
perante o dia



blimunda dixit

20 junho 2006

27. de um solstício. de uma lua cheia. de um verão

virão os dias mais curtos. mas agora
escrevo-te
que o sol incha em solstício
e a lua
prolonga-se no céu
aqui nas arribas
onde o vento fustiga dois aloés
e eu parada escuto
os gritos curvos das gaivotas. está frio.

por cima das águas eu vejo caminhar
essas horas esborratadas de anil
lilás
e nomes. pescadores lançam linhas
transparentes rotas entre o céu
e o mar e o silêncio que os habita.


cheira a maresia
cheira a monte à beirinha do sal
cheira a um sol que vem
lenta
lentamente acariciar o meu corpo. maravilham-me
estas horas roubadas
este momento em que dizemos
já é dia meu amor
se tivessemos amor a quem devotar
o dia e as horas do dia

a cor inaugura-se limpa
inchada de importância:
cai um só nome e deixa-se ficar
entre mim e as asas curvas das gaivotas

eu sei

hoje o sol esqueceu-se de si
e brilha equivocado
noutro lugar

assim
és tu
assim
sou eu

e a revolução dos corpos
dá-se em permanência:

verão
virão os dias mais curtos. depois.

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encontrado em formato de comentário aqui



blimunda dixit

31 maio 2006

26. Lâmina de mágoa

Na palavra desarmante
me encontras presa
oscilante
entre a manhã que adivinho
e a noite que anuncias.
E é na orla dos dias
desse difícil caminho
que te chamo amor
amante
lançando a voz sobre o fio
dessa lâmina de mágoa.
Vê que no leito do rio
que o teu olhar alcança
o meu corpo é a água.


Lique dixit

26 abril 2006

25. As flores da rua


Olho para cima, para a nuvem branca com forma de urso polar que cruza o céu azul sobre mim, enquanto os pardais saltitam pela calçada a chilrear. Os meus passos demoram-se na mais tripeira das ruas, o olhar perdido no reencontro das construções seiscentistas e nas varandas onde noutras eras suspirou o amor na Rua das Flores. Mais adiante, três mulheres idosas estão à porta de uma casa e conversam entre risos, sob o aroma das flores que se eleva no ar e volta a escorregar silenciosamente dos telhados para a rua.

Um homem vem a descer a rua na minha direcção e detém-se regularmente, tomando notas num bloco imundo e semi-desfeito, olhando à esquerda e à direita, como se estivesse indeciso. As cãs desgrenhadas ofuscam ao sol como uma clara de ovo, os óculos têm a armação remendada e a roupa que veste está puída e sem memória de côr. Olha para mim um instante, quase me cumprimenta mas depois coça a cabeça e volta a escrevinhar algo antes de recomeçar a andar. Aquele olhar ausente dispensa qualquer conversa, a razão vive quase sempre mais nos nossos olhos do que nas nossas palavras. Observo-o a distanciar-se, uma silhueta alienada que segue no lado do sol do passeio, pontualmente investindo até ao meio da rua para anotar algo, e com isto espavorindo sempre os pequenos e assustadiços pardais.

As três mulheres que estavam à conversa aproximam-se de mim lentamente, observam o pobre homem e meneiam a cabeça, uma delas tenta exprimir o que sente com a sua mão pousada sobre a boca. Contam-me à vez a história do homem que perdeu a razão quando a noiva o recusou nos dias de juventude, negando para todo o sempre o enlace sonhado. De longe a longe o homem volta a percorrer a rua, dizem, de bloco em punho, a tentar encontrar em alguma poeirenta arrecadação da sua memória o número da casa onde a sua noiva vivera. Anota todos os números dos prédios e das moradias, registando qualquer dado que possa reconhecer. Dezenas, centenas de números, escritos numa caligrafia senil, certamente sobrepostos e repetidos até à exaustão, uma busca inútil da inexistente chave que abrisse as portas do Tempo e da faculdade dos princípios. Os anos de ausência, o regresso da guerra colonial, a recusa, o horror da solitária vivência em hospitais psiquiátricos, a loucura e a pobreza. A vida torna-se morte em vida, o que se é resume-se a um rabisco sem sentido num papel amarelado e sebento.

Observo uma poça de água no passeio a reflectir todo o fulgor do sol enquanto ouço as últimas palavras das mulheres. Depois despeço-me e quando vejo os sorrisos engelhados daquele trio de pequenas anciãs, sorrio em resposta pois as pessoas do Porto são afinal o melhor que esta cidade tem. Quando começo a andar lembro-me de alguém me ter contado que era na Rua das Flores que outrora havia lojas de panos que vendiam às raparigas casadoiras os enxovais que constituíam o seu dote e sorrio outra vez, mas desta vez sem nenhuma alegria. As sardinheiras debruçam-se nas varandas como se ouvissem as histórias da rua e há pétalas vermelhas no chão. Talvez por cada pétala caída nasça uma nova esperança algures, talvez haja sonhos que também assomam às varandas das casas antigas da Rua das Flores, imaginando onde vão ressuscitar na próxima alba.


katraponga dixit

14 abril 2006

24. Noutra Jazida

Existe uma forma mais interessante para dizer isso. Existe, mas não se usa. Existe uma canção para acompanhar essa batida, contudo, e também, não se cria. Existe uma infinidade de coisas para reinventar um monte de coisas mas que por algum motivo preferimos os vínculos com as formas antigas. E nisso somos iguais aos outros tantos que se parecem a nós mesmos. Suor, temor, passividade e obediência. Somos idênticos. De acuados como coelhos à preservação contra as limitações, somos idênticos. Em respostas que já sabemos e perguntas prudentes, definitivamente fazemos parte da mesma caterva de indigentes. Nas previsões nefastas, sem valor agregado algum, escolhemos as mesmas quando o que nos toca é extinção, esvaecimento ou avaria. Presos ao mesmo motor, ligamos as hélices de um que-se-foda enquanto afundamos em remordimentos. Dores inúteis, só pra deixarmos a coisa rasgar por dentro, devagar, como toda sentença avara que só nós sabemos reservar a nós mesmos.

Pelas consoantes dessas tintas chegamos a um quadro no mínimo esquisito, o dos poemas que só navegam e prosas morosas sucessivas de sombras sem nenhuma eficiência, senão aquela para ficarmos sangrando na merda das feridas. Se estancar fosse algum método avançado que se aprende sem se descascar a própria pele, talvez valesse a pena lê-los, flanar em movimentos que não são nossos, mas cuja rotação por alguma razão desconfiamos pertencer. Mantemos com ela uma junção fecunda que se constrói enquanto é o outro que vai caindo, uma vez que para existir na gente esse outro precisa sentir muito parecido. O mal que ele devassa tem o mesmo cheiro, a mesma textura daquilo que nos consome vivos, lúcidos e mortais. Absolutamente mortais, sem honras nem créditos que uma brochura qualquer possa ter. Por isso escrever só vale para quem acha que ordena a vida em capítulos a fim de observar os círculos do seu tempo, entrando e saindo dos seus infernos, mostrando por onde se entra e como se sai. O resto é comentário disperso, permanente e pobre, despojado da realidade de como nos extinguimos na nobreza de um verso. Ou de uma frase, bem humana, quando nos mandam para o inferno.

Esse é o limite que se impõe a quem sente e escreve. Elisa nos meus braços é quente, Elisa no teclado é uma sensação que se descreve, mas poucos sentirão o calor da Elisa como eu quando a tive por perto. E se hoje ela anda sumida, a quem importa esse fato senão àqueles que um dia tiveram uma Elisa quente nos seus braços? Que para lembrarem-se dela irão me ler só para não deixarem envelhecer os braços, a quentura, que não é da minha Elisa, mas a deles, para quem eu não criei um roteiro que mostrasse como eu estou caindo sem a minha Elisa quente e longe dos meus braços. Não há orgulho mais exilável do que ter sentido algo, escrito sobre esse algo, mas que serve apenas para deixar entrecerrado o desamparo. Melhor foi ter sentido, sem que ninguém soubesse, pois quem me remete para esse fogo sou eu, sem necessitar de escrita, páginas de justificativas de como se perde quentura, braços, Elisa e perto.

Por isso que das perdas e suas baldeações trato-as como lendas. Dizem que foi, afirmam ter visto, era uma vez uma fome e a saciaram para sempre, pois não me satisfaço com restituições de esperança, sobrevidas de farturas, fugas, transportes e pretextos. De séculos venho amando o real, obstinado com o sustento real, na mais rasa motivação real, sem prolegômenos frugais como antepasto ao massacre de realidades que engulo depois. Quando eu afundo, afundo porque quero e fico lá não por conta de um poema que eu leio como peixe num aquário ou prosa erudita num acadêmico enferrujado. Fico no fundo porque a realidade queimou, bateu aonde não deveria, e por instinto ou passageira confusão, fico lá, por algum tempo. E ninguém vem me resgatar porque ninguém me levou pra lá, nem Elisa, nem braços, mas uma quentura desbocada gritando Você se fodeu, Você se fodeu. Por isso é que eu digo: alguns nascem para narrar o passeio, outros para morrer no passeio. E outros, os reais, para desfrutar do passeio. No gozo. Sem os círculos e os capítulos, subindo e descendo nesse andaime que só nós conhecemos, sua arquitetura, seus extremos, do chão ao mais dourado dos mundos. Real e deliciosamente por dentro.


Ilidio Soares dixit

29 março 2006

23. A Razão da Testemunha


Não vos causa estranheza a designação «testemunha presencial»? O que é que isto é suposto definir: um tipo que estava fisicamente presente num local onde se deu uma ocorrência, não? Ora isto significa que quem não estava fisicamente naquele local quando se deu a concorrência é uma «testemunha não presencial». Cheguei à conclusão que sou uma testemunha não presencial de milhares de atrocidades e isso deixa-me preocupado. É que esta condição de testemunha não-presencial coloca-me na eminência de qualquer dia ser intimado a comparecer num qualquer tribunal algures no mundo, para testemunhar não presencialmente um crime qualquer, o que convenhamos não dá muito jeito, principalmente se tiver que fazer várias escalas.
A outra designação dúbia é «testemunha ocular». Isto supostamente define alguém que é uma testemunha presencial e que ainda por cima viu tudo o que se passou em determinada ocorrência. Ser «testemunha presencial» não é o mesmo que ser «testemunha ocular»? Ou também há «testemunhas auriculares»? Curiosamente nunca ouvi ninguém falar nas testemunhas auriculares, aqueles tipos que estão no lugar da ocorrência mas que por qualquer motivo não olham para ela. Não olham, pronto. Não gostam de olhar para aquelas porcarias. Mas ouvem. Ouvem tudo. Não serão estes gajos testemunhas auriculares?
Isto leva-me a pensar que podem existir «testemunhas não presenciais auriculares»: tipos que estão longe da ocorrência mas que conseguem ouvi-la. Esses tipos são considerados legítimos? Mesmo que o pai seja incógnito? Não faço ideia.
Mas onde a coisa se baralha mesmo é com aqueles gajos que estão longe da ocorrência e no entanto estão a olhar para ela com um par de binóculos. São as «testemunhas binoculares». Estes nem são presenciais nem auriculares (porque estão longe demais para ouvir o que quer que seja). Poderão estes gajos ser levados a sério num tribunal? Espero bem que não. É que eu todas as noites sou testemunha binocular das excêntricas actividades nocturnas de uma vizinha jeitosa, e não me dá jeito nenhum ir parar a um tribunal.


Humor Negro dixit

27 março 2006

22. n.



não mudou nada. nem as folhas que jaziam. sobre a jarra. dentro da árvore. nem a água. dentro da terra. se escapou para o mar. nem o azul dourado amanheceu e fez o dia. nem a escuridão fez a noite como antes. quando ainda dormíamos. repito. quando ainda dormíamos. repetindo. contando as vezes que roubávamos ar. ao ar. repetindo. ar. ao ar.

se te contar. que já escrevi sobre este mundo. e não encontrei. uma única pedra para atirar. os braços mentiam ao corpo o movimento. e só me saía fuligem pelos olhos. ao alvo morto ao longe. e não soube o nome de ninguém. e não cheirei nenhuma flor. e não provei o sal. nem sei ao que sabe. e não beijei nenhuma mão. árida e seca. e não sei o que é ser. árido e seco. e penso e julgo. que ser árido e seco. é ter uma vida. virada para dentro. e ali. no dentro. tudo se consome. o ar. a terra. o amor. e a saudade.

se te contar. que não mudou nada. que os cães ainda andam soltos. a morder as pernas de quem quer andar. que a poeira se agarra ao rosto. e com o suor. se transforma noutro rosto. e nos engole. que as mãos que transformam a terra. em tudo. estão cansadas. e sós. e à tua espera.

e não mudou. nada. se o nada não é tudo e se o tudo. é nunca.

nunca é nada.

n. de nada.



joão dixit

21. DENTIÇÃO INCOMPLETA


*o amor é tudo – excepto o que deveria ser * luísa monteiro


comíamos nêsperas maduras sentados no muro
ensolarados de tanto abismo lá em baixo
de tanto sol lá em cima de tanta doçura de frutos e de tantos dentes de morder frutos e línguas de chupar sumo de frutos maduros e tu
: à noite sonho com peixes e abismos de mar e ventres de mulher e brancuras de beijos de mulher e filhos peixe de ventres líquidos de mulher
mas
sabes, a noite tem pernas curtas como a mentira
a morte
vem sempre primeiro como uma manta de papa e dedos ásperos
o tempo nunca chega e é sempre como o sumo
a escorrer
às vezes doce
às vezes só maduro
e sobra sempre tudo que é a morte.
a minha canta-me
dorme meu menino de oiro e até parece dois olhos grandes e umas mamas de leite branco
quente quente, mas não é, não é,
e, sabes,
nunca fiz um filho
nunca nunca
fiz um filho

e eu
: quando eu morrer quero ser cremada e soprada em cinza de ramo de nespereira maltratada. sabes
as nespereiras mais maltratadas
dão as nêsperas mais doces
e tu
:cuspo sempre caroços grandes grandes demais para a minha boca
e o céu da boca fica maltratado de tanta semente
assim
gorda
como palavras doces e inchadas à procura de nome

dizes
: nunca nunca fiz um filho
ainda assim
sonho com mamas grandes de um leite branco
e abismos que são ventres líquidos de mulher
e têm dentro peixes com olhos
exactamente iguais aos meus. estranho
o nome de uma mãe
desenha-se na minha boca quando chupo desse leite
branco
e nado nesse ventre líquido ao lado dos peixes
com olhos exactamente iguais aos meus. mãe? sim?
nada, não é nada.

eu
:sei que a
minha morte tem a minha cara e o nome que
não me dei e a minha própria boca cheia até ao céu de palavras
doces
inchadas de todos os nomes
excepto os que deveria ter
por exemplo
:amor.
que é quase tudo
excepto o que poderia ser.


primeiro:
está frio. e é noite. está tanto frio que me doem as letras nas articulações entre parte de
uma palavra e
outra.
frenéticas de dedos e pensamentos mancham a noite. a fingir de dia. o meu gato também finge
cloacas à noite
em equilíbrio sobre os muros de paredes estreitinhas
corre e não corre
e dá-se em fodas tão fingidas como estas palavras

(invento-me. e sobra-me sempre tudo)

para afugentar a pretidão da noite
a pretidão

o olho do cu do meu gato é um enorme vazadouro de pretidões e ele importa-se lá
foder
é para nós
que não somos gatos e temos cloacas ou olhos de cu
e medo da morte.
neste janeiro em março
oiço-lhe um longo miado.
enrabada na noite
a morte que dele espreita sai com passinhos leves
não faz um filho
não
não precisa.
a herança de um gato é sempre a própria morte
simples
branca de leite e quente quente. pequenina.
a minha
não. a minha morte é enorme como dois olhos vazadouros de palavras sem nome. e peixes com bocas cheias de palavras tão sem nome como as minhas. por exemplo
: o tempo do tempo todo
escorre-me dos dedos
como as nêsperas em sumo nos escorrem
sentados
ensolarados e
cheios de abismos com mães por dentro

mãe?
sim?
nada, não é nada

segundo:
o mar. ecoa contra as arribas desta terra
aqui
e dá-se em orgasmos de sal que se colam às janelas da nossa casa corredor. contemplo
esse som colado ao vidro e sei que é por causa do sal
suor cuspo lágrimas tudo
de tudo
que o vento é maresia
: sinto o meu ventre como maré de mar
que vai e
vem. em ondas de tempo salgado e luas e sóis e ainda outras e mais luas e
outros e mais
sóis. o meu sexo incha e dá-se
em águas salgadas
e em palavras que me escorrem pelos dedos como filhos
peixes maduros
de olhos exactamente iguais aos meus

mas
nunca nunca fiz uma palavra que fosse um filho teu maduro
ainda
de doce e nome por dizer

e do amor sobra-me sempre tudo – excepto o que deveria escrever

por exemplo: tenho todo o tempo para te dar
e

se escrevo é para inventar esse abismo em que
as águas da minha morte se separam.
por cima um céu de boca a escorrer sumo
por baixo um imenso olho em que a terra se abre
como um ventre líquido de mulher
com mães por dentro
e
a morte é apenas mais uma parideira
da minha noite noite e da minha noite dia


caminho por cima das águas e os dedos
gritos prolongados de gaivotas
são apenas asas curvas e ponteagudas que furam a própria pretidão

mãe?
sim?
nada, não é nada

terceiro:
sabes que usa uma espécie de cola que mantem os dentes falsos na boca
para quando falar mentir
com todos os dentes que tem no céu
da boca?

a dentição incompleta e por cada falsa
verdade um pensamento é arrancado à terra límbica que são os céus todos líquidos de uma mulher por dentro. acorda, vá, o veludo listrado de esperma vermelho
do sofá
grita em mãos e em bocas: que será que acontece ao tempo todo ao tempo
de tudo
quando já não temos dentes de morder e deixar que o sumo escorra
pelos cantos da boca cloaca mundo todo? é assim

a minha boca como o tempo todo esvazia-se e fica só um céu por cima e águas que já não se separam
e onde o branco branco
quente
é o teu e me escorre em não palavras em não nomes
e o tudo que é
excepto o que deveria ser


anda
vamos lagartear ao sol e deixar é cair uma parte de nós
essa que é tudo o que deveria exactamente ser
como cometa lagartixa e
rir
que a cauda de uma lagartixa cresce ainda que arrancada
quem me dera que o amor fosse assim, digo
pois, dizes,
um tempo esperma vermelho
de mãos e bocas
caudas cometas de lagartixa e miados
de gritar e foder a morte


quarto:
meu homem, diz lá
se te comer do pão com a boca toda e te beber
três vezes do vinho
com a boca de dentes toda
achas que vou direita ao céu da boca do teu amor?
sei lá,
depois de sonhares abismos as águas entram pelos olhos
e desatam-se em palavras sem nome
e nunca mais o amor é assim uma espuma como a do mar
leve
leve
tão leve que em tempos certos até pode voar

achas que o amor que é tudo
e mais essa palavra sem nome
pode voar-me por dentro?
não, o amor é tudo excepto essas asas nos pés. tem pés de chumbo e
puxa-te para uma pretidão tão preta que nem a ti
própria reconheces. não se dá em nomes
não conhece o teu rosto. anda por lá
meio às cegas e de vez
em quando
desata-se na tua língua
desfaz-se na tua pele como outrora a espuma de mar
e
tu cais lá dentro e é como um ventre fecundo
sempre a parir dias sempre a parir noites e
depois nunca mais caminhas a não ser agarrado a esse chão
voas, se calhar voas, mas é rente, sempre rente
à cova que os teus pés marcam
porque é assim como morrer
só que antes do tempo
antes do tempo todo do tempo

olha, uma cauda de lagartixa a caminhar sozinha.
é.


último:
estou só
com o meu gato de cloaca fingida estou só
e está frio e doem-me as articulações entre um pensamento
e uma palavra sem nome. doem-me as carnes em que os pensamentos à procura de nome
se dão em palavras e dói-me o meu sexo
inchado de tanto pensamento.

a avó dizia: veste a cinta, menina, aperta as carnes
e eu:
as minhas carnes crescem no exacto ponto em que a minha cona ainda ratinha de pelo penugem
deixa ver as entranhas do meu tempo
as minhas carnes é uma nêspera ensolarada e abismada
de sumo a escorrer pelos cantos da boca céu
e a sobrar em filhos de palavras sem nome
e filhos de homem
que não é o meu


chego-me ao meu homem de cheiro a meu homem e quase
sinto o cheiro do meu futuro tempo. mordo-lhe na boca um nome
para esta palavra sem nome.
o seu sangue tinge-me a noite e
separa os abismos do tempo. o meu ventre
líquido de todas as mulheres
dá-se em espuma
sim
leve
leve com sapatinhos de cristal que até podem fazer voar
e eu
digo vem
faz-me o amor em letras de carne
e dá-me
um nome porque


está frio. frio de orvalho que pinga não pinga nos beirais da nossa casa corredor e penso que tenho para aí oito anos e de pernas nuas e saia rodada sinto um lagarto descer pela roda ó i ó ai e não sou a carolina
mas estou do lado de cá do muro de parede estreitinha e os meus irmãos a gritarem
anda lá ó cagarolas ovo podre

oito infinito
par de olhos que espreitam a minha ratinha de pelo penugem e um fiozinho de sangue que é todo o tempo que havia nesse tempo
e não menstruo
sou uma menina que não corre e está em frente a um muro de parede estreitinha e alta
muito alta

gotas de minúsculo sangue caem nos abismos da cloaca terra e
o futuro é o meu sexo amadurecido como uma nêspera maltratada
(são sementes pequeninas, meu senhor, são sementes)
e com a boca cheia cuspo dias e cuspo noites
sementes de pretidão tão preta e tão pesada como cobertores de papa

o meu sexo não tem nome. mas poderia até ser gato.
ou ter o teu. de homem com cheiro a meu homem

deste outro lado do muro imagino até que posso ter oito anos e corro pelo muro em equilíbrio atrás dos meus irmãos
anda lá cagarolas o último a chegar é um ovo podre
e as pernas nuas e não uma saia mas um lagarto a comer
me
o sangue e não menstruo é apenas um joelho esfolado
ou uma ferida de tempo no tempo
ou um futuro de filhos a escorrerem
entre as pernas e

Mãe?
Sim?
Nada, não é nada

o meu homem cheira a meu homem e dorme ao meu lado
nesta pretidão da noite com roncos brancos de mar
e sangue e sal e cuspo e esperma de onda
de onda
do meu ventre abismo saem peixes de olhos
exactamente iguais ao dele
só que os dele estão escondidos atrás do sono
e nada, não é nada
apenas o tempo a roer
me
por dentro dos teus olhos que não vejo
das tuas mãos que estão enconchadas entre as tuas mamas
pequeninas
fingidas como mamas de mulher
mãe
o meu homem que imagino ser a minha mãe
e dar-me a beber o leite quente das suas mamas fingidas e colo
de mulher.
mas não. o sono dorme-o.

e eu
: não tens útero para tanto filho,
não tens.

e caminhas com os sapatos de chumbo
do amor

essa palavra sem nome
escreve-se torto pelas linhas a direito do
meu corpo

acorda
:quando eu morrer quero-me cinza no tronco
de uma nespereira
a mais maltratada e doce nespereira
depois
come dos frutos e cospe-me
em caroços
não sementes
não sementes
ao sol
ao sol


e anda lá, vem
amar-me ainda assim
ainda que na maior pretidão
a boca cheia até ao céu
dos abismos de peixes olhos
com o tempo a espreitar por entre a morte
e essa noite de muro de parede alta e estreitinha
:do lado de cá é o amor que é quase tudo-excepto o que deveria ser
:do lado de cá são os meus quinze anos
e menstruo
:do lado de cá o tempo todo que havia de haver nesse tempo todo e

finalmente
não parir-te um filho
antes
apertar-te entre as carnes do meu próprio nome

dizes
:perfilhar-te

que é tudo o que deveria ser. o amor.


blimunda dixit

19 fevereiro 2006

20. Tempo de Inverno


são curtos dias de alongar
gelos que a manhã desperta
vento que solta estranho grito
silvo de dor desfeita em água fria
abrem-se as mãos ao sol do dia
para amanhã a vida se enrolar
casulo que espera borboleta

o canto cinza do amanhecer
embala a melancolia da terra
dormente, deitada em silêncio
sabendo o segredo que o ventre
carrega onde o frio não chega
esperança calada da semente
doçura verde do renascer


Lique dixit

17 fevereiro 2006

19. A morte


Estranho o acto de se contemplar a si mesmo deitado no solo. A sensação era a de ser uma massa inerte e despojada de vida.
Apesar das sombras que contornam o corpo e que se movem na exacta velocidade do rodar do Sol e da Terra.
Como seria de esperar, não existia simetria entre o corpo e as sombras; estas estavam mais descaídas na obliquidade da paragem forçada do corpo que apenas se move em função dos movimentos circulares das voltas da Terra sobre si mesma e das enormes parabólicas em torno do Sol. Tudo ao ritmo lento da Natureza.

[Natureza morta] pensou de si para si; o nada que se via a si mesmo deitado de encontro ao solo.

A projecção [dele próprio, corpo morto]. Sorriu.

Sabia vagamente que flutuava embora não entendesse porquê, da mesma forma que [lhe] era ininteligível o facto de estar a ver-se de costas [as imagens reflexas que havia obtido no espelho – apenas de frente – devolveram-lhe sempre uma imagem em negativo de alguém de quem não desgostava. [Corpo esguio]

Odiava a posição em que se encontrava – por ser uma exposição? – caído de bruços com a perna esquerda esticada e o pé ligeiramente de lado, enquanto que a direita se tinha recolhido a uma espécie de posição fetal – O pequeno corrimento rubro que saía pela nuca dava-lhe a sensação de que poderia estar morto, o que parecia obviamente uma impossibilidade já que se conseguia olhar a si mesmo e sentir o movimento das pessoas a circularem na rua – alheias ao corpo caído – o ruído dos automóveis e até algumas graçolas de mau gosto.

Preocupava-se sobretudo com as sombras, enormes contornos escuros que se moviam com uma lentidão arreliadora.

A invisível campânula vítrea abafava os sons sem deixar entender aos transeuntes a voz que em pânico gritava palavras sem nexo.

Voltou a sorrir quando entendeu que era um indigente, um sem-abrigo, alguém que simplesmente tinha sido despojado de toda a dignidade. A morte sobreviera e apenas os contornos de uma sociedade estranha e sem humanidade permaneciam na memória que o acompanharia na longa viagem a outras dimensões.

Tudo agora eram sombras e inevitabilidades.



LetrasAoAcaso dixit

18. simbiose


Flávio Machado (c)


nos cabelos submersos
da manhã
caminha a garça

por ventura ou
por desgraça
neles embaraça os pés

de tal modo entrelaçadas
seguem sem vôos
garça e manhã
até que o sol se ponha
até que a noite se faça

e seja a manhã não-manhã
e seja inda garça a garça



Márcia Maia dixit