30 janeiro 2006

11. a ponte



Parávamos a meio da Ponte 25 de Abril. Se fôssemos rápidos, a coisa resolvia-se sem muitas chatices. Fazíamos o que tínhamos a fazer, metíamo-nos no carro, dávamos a volta a Alcântara e regressávamos a casa.

Por vezes, quando eram muitos ou quando tu te comovias particularmente, os minutos alongavam-se terminávamos por ter a companhia do carro da GNR. Perdi a conta ao número de vezes em que tive de explicar ao graduado de serviço ao que vínhamos. Cansava-me de explicar que embora fosses calada e eu te acompanhasse em silêncio, não éramos potenciais suicidas nem nos passava pela cabeça atirarmo-nos da ponte abaixo. Não éramos desses. Com o passar do tempo, acabámos por ficar conhecidos do pessoal do Posto e a vida tornou-se mais fácil.

O ritual era sempre o mesmo. Saías de manhã, bem cedinho. Apanhavas o barco das 05.15 para o Cais do Sodré e fazias a tua peregrinação de sempre pela Ribeira.

As bancas do peixe eram a tua perdição. Passavas horas naquilo. Pé após pé, fazias quilómetros dentro do Mercado. Alinhados nas pedras, cobertos de gelo, os peixes fitavam-te, olhos nos olhos. Descobrias entre todos eles os mais infelizes, os mais desalinhados, os mais desconsolados. E, invariavelmente, comprava-los todos.

Carregada com os peixes mais tristes do dia, retornavas a casa. Na manhã que te sobrava e durante toda a tarde, celebravas as exéquias devidas: vestias-te de negro, oravas, meditavas e choravas. Depois, quando o turno da Setenave terminava e eu regressava a casa, comias em silêncio a malga da sopa e o pão escuro e duro que nela demolhavas. Depois esperávamos até que a tabela das marés que tinhas sempre contigo te indicasse a hora certa para a viagem - confesso-te que, de todos os rituais que tu tinhas, essa espera era o momento que mais me custava a passar. Dizias que não querias que eles fossem dar a Vila Franca ou que apodrecessem no Mouchão de Alhandra. Que com a maré vazante eles descansariam em paz eterna, no oceano profundo. Que do mar vieram e ao mar retornariam, algas às algas, areia à areia. E eu acreditava.

De mãos nos bolsos, imóvel sobre o tabuleiro, indiferente aos carros que travavam e apitavam, ficava a ver o teu choro triste quando te despedias deles e os lançavas um a um da ponte abaixo. Pescadas, corvinas, cações, salmonetes, toda a espécie de peixe de todo o mar de Portugal era objecto da tua compaixão diária, do teu luto desenfreado.

Sabes bem que nunca te quis mal, amor. Sabes bem que me era muito difícil poder pagar todos os peixes que compravas, que a vida foi sempre madrasta para nós, que tudo se tornou cada vez mais difícil depois da fábrica ter fechado as portas.

Quero que saibas que penso muito, muito em ti. E que choro muito, mas mesmo muito, sempre que aqui na prisão nos servem pescada cozida ou carapaus com molho à espanhola. Nesses dias, nada como. Passo fome. E grito. Grito como tu gritaste quando naquele dia te empurrei em direcção à paz eterna no mar profundo.


Alexandre Monteiro dixit

29 janeiro 2006

10. (post circular n.º 4)


o homem que descobre uma mulher
será sempre o primeiro a ver a aurora.
Bruna Lombardi - Uma Mulher





primeira fala

Sou eu, a abrir a porta do quarto, e a olhar para ti deitada na cama gigante com dossel. Sou eu, que numa voz reservada chamo por ti: vem! Sou eu que, momentos depois, te dispo em frente do espelho porque gosto de te ver, e digo: gosto de te ver. E dispo-te. e digo: quero foder-te, agora. Sou eu que te agarro nos meus braços e, secretamente, sem que te diga, julgo encontrar a resolução do problema maior: porque existimos? Agora sei, amor, que é para estarmos os dois despidos em cima desta cama, para nos amarmos com esta necessidade de desaparecermos. Sou eu, quem te toca nos seios, te beija os seios. Sou eu que te agarro, sou eu que sou agarrado por ti. Sou eu, essa língua que sentes afogar-se no teu corpo, esse pénis ardente que morre em ti como se nascesse. Sou eu que afago as metáforas com que te possuo. Sou eu.



Porque me despes completamente
sem que eu nem perceba...
E quando nua
por incrível que pareça
sou mais pura...
Porque vou ao teu encontro
despojada de critérios...
liberto os mistérios
sem perder o encanto
do prazer...
Porque
quando nua
sou única
e exclusivamente
tua...
Isabel Machado - Nua



mónica gostava que ele lhe metesse as mãos entre as pernas enquanto ainda estava vestida: os dedos a afastarem a seda das meias, a tentarem alargar o cinto de ligas, a deslizarem na pele macia das coxas, a insinuarem-se já pelo caminho dos pêlos até à humidade quente dos lábios grossos, salientes e largos da vagina, onde sentia pulsar um perturbante coração afastado.
Ou uma boca cheia de sede.

dizes-me caminho contigo nua por dentro dos olhos e eu aqui a pensar com que essência hei-de perfumar este corpo para que na tua boca só o sabor da minha te ocupe. a sede cheia da tua boca.
ou deixar que me ates a esse teu dia e caminhe contigo
assim por dentro dos teus olhos.
e onde estiveres virás sempre em mim. assim. secretamente.


deixava que as pernas subissem, os pés roçando os ombros, mas primeiro como se hesitassem, numa espécie de abraço em torno do pescoço; depois, desciam de novo até aos ombros, abertas. Oferecendo-se, enquanto Pedro começava a lamber-lhe, ao de leve, as virilhas com o seu cheiro a fruto; um pequeno suor salgado a insinuar-se por dentro da saliva, dissolvendo-se na língua. E o sussuro, o gemido, eram tão baixos que ninguém saberia determinar de qual dos dois partiam.
Assim, vestidos.

dizes-me não esperarei um só segundo para me deitar no teu corpo. tenho a urgência em forma de pele e quero colher de ti esse fruto de silêncio. dizes-me não esperarei despir o teu corpo para me deitar nele. entrarei pelos teus olhos pela tua boca e descerei aos abismos mais quentes do teu ventre. dissolvendo-me no pequeno lago salgado entre os teus lábios. e se um gemido se colar à nossa pele é porque é de sussurros que os nossos corpos se fazem
e desfazem
entre as nossas mãos. um só pedaço de ti e saberia refazer-te
toda.

desde o princípio, como gostava, logo depois de chegarem ao quarto da pensão pobre por onde ele a arrastava, ambos de respiração suspensa, subindo depressa os degraus da escada nauseabunda, penumbrosa, madeira lascada, gasta pelo tempo. Pedro, excitado, parava a meio para se esfregar nela, e Mónica quase gritava de gozo, prazer que isso despertava nela, curvada sobre o intenso cheiro almiscarado que o pescoço dele guardava, odor a cortar-lhe a respiração, entontecida e sôfrega.
"Não me quero vir já..." murmurava ele a morder-lhe os pulsos febris, breves, algemados pelos seus dedos à parede esburacada. E continuavam subindo a escada, sem fôlego, até ao último andar, patamar onde aparecia uma mulher gorda e pintada, que nas primeiras vezes lhe perguntou a idade - "por causa da polícia...", explicou; mas que nos meses seguintes se limitava a conduzi-los, sem palavras, até ao quarto que lhes alugava, quase vazio. Uma cama, uma cadeira, um candeeiro e um espelho chegavam-lhes durante as horas que ali passavam, nas quais só queriam beber-se, devorar-se um ao outro, misturando os sucos, o cuspo, o prazer, partilhando a posse.
Às vezes Mónica gritava.

dizes-me quero comer de ti a carne macia e rosada entre as tuas coxas. gritar-te por dentro que és minha e
sobre o cheiro intenso que te deixo
imprimir-te as minhas mãos e o meu sexo ardente
como dentes. morder-te a nuca e entrar em ti com a fúria toda de homem. não.
não chega devorar-te o corpo. é nos teus seios
ou entre as tuas pernas que quero todo o meu corpo.

pedro punha-lhe então sobre a boca a palma da mão, que ela mordia, e explodia dentro dela, o corpo muito magro erguendo-se, febril, enquanto a via continuar ainda e ainda revolvendo-se, os dedos excitando-os dentro de si, enquanto se ia masturbando ao mesmo tempo.

dizes-me não sei que fazer a este desejo intenso a este cheiro a mim e a ti
que se cola aos meus dias e
me transporta para aí
onde estás e me reténs. eu sei os teus dedos de cor
e com eles viajo por dentro de ti. cada um prolonga uma parte
do meu corpo. a boca de língua que te penetra
as mãos que te puxam e seguram entre as minhas coxas
e um meu sexo febril que te procura. não há lugar nenhum onde eu
saiba mais de mim
que em ti. caminhar contigo nua
assim
por dentro dos olhos é morrer a cada espasmo. e
reviver a cada vez que te dás. que me dou.

a terra é uma cama gigante. em cada rua eu te possuo com
um nome diferente. em cada rosto eu te olho. e se não chegasse
para enlouquecer de desejo
olho o meu corpo e nada nele nega a tua presença.

o dia a noite e
o céu esse dossel que nos cobre e esconde
dos olhares dos outros servem-nos de quarto. deito-me em ti em cada hora
e em cada vez te inundo do meu sémen. emprenho-te com este segredo
e já és minha mesmo sem o saberes.

volto a ti. nua. deitada. para mim. só para mim.


( pausa. digo-te de mim: nua. deitada. para ti. só para ti. desvelo
entre as coxas o segredo do teu corpo - em cada lugar do meu corpo
a tua língua deixou um rasto. e é o teu cheiro que cheira
na minha pele. e o teu sémen
que me nasce
lenta
lentamente. agora. aqui. enquanto escrevo.)

espasmo: que fazer com estas mãos e estes olhos
que te esperam. pausa: faremos amor como quem não nasceu
para outra vida.


Wyeth; segunda voz: maria teresa horta- "Mónica", in intimidades e blimunda


Luís dixit

25 janeiro 2006

9. dia 31 de outubro, 2041 / dia 24 de junho, 2028



(dia 31 de outubro, 2041)

I

Não fosse o barulho da cidade em movimento, neste fim de tarde, suficientemente agressivo, o silêncio dos pássaros tornar-se-ia desesperadamente ensurdecedor. Olho-os, percorro o seu trajecto agitado, e não os ouço. E eles voam em torno das árvores, tantos ... e eu não os ouço ... seria hora de acordar aflito, se ...
... mas não sonho.
Esta angústia remonta a uma antiga intuição,

... com a obra morre a ideia ... ... com a morte vê-se o silêncio ...
“... são almas que choram, ...”



As pessoas que me evitam, apressadamente, afastam-me o pensamento dos pássaros e olho em redor. Encaminho-me para aquela igreja - na falta de uma gruta, uma catedral...

À porta, cumprimento o mendigo (há sempre um mendigo à porta das igrejas). Apetece-me sentar a seu lado e pedir-lhe um pouco de pão, pretexto que a seus olhos seria válido para legitimar, pela fome do corpo, a nossa irmandade na solidão do espírito.

Sento-me e não lhe peço nada ... mas anuncio-lhe com tristeza: "os pássaros morreram".
Ele já sabia, levanta-se e afasta-se apenas para não ter de enfrentar a minha inocência.
Não entro. Deixo-me ficar sentado, indiferente ao que as pessoas vão pensando enquanto por ali passam. Os nossos olhos cruzam-se por vezes, e apesar de a minha aparência não provocar o habitual desviar do olhar e da misericórdia, o insólito da minha postura inexpressiva traz à superfície aquele tipo de sentimentos que, como a compaixão, nunca vêm sós. E é numa mistura emocional que alguns aceleram o passo, enquanto outros, por associações tão pessoais que não se enumeram, não hesitam em contornar-me e, sem deixar de com o olhar mo agradecer, entram na igreja.



3. imponderável charme de morte

(deste lado)

I

Ao fundo, o negro das roupas que vestem o silêncio confunde-se com as paredes nuas e sujas. Mesmo a luz que consegue tenebrosamente entrar, apenas contribui para o contraste dos cinzentos (quase amarelecidos, é certo, em algumas horas do dia).
A regularidade a que os bancos corridos se distanciam faz-nos recordar as ondas, as nuvens, os socalcos ou os telhados dessa cidade que já não há – cidade invisível, dos nossos sonhos de ontem...
De cada lado, as figuras perguntam-nos silenciosamente as horas, ou melhor, questionam-nos sobre o tempo (pois para a eternidade da pedra ou da madeira o tempo é o único assunto que realmente lhes importa). Os seus olhos levam-nos sempre a tentar localizar historicamente a sua origem, como se o sofrimento que lhes deu “vida” pudesse ter outra explicação que não os vícios da nossa própria falta de fé, a maldade sobre-humana de alguns de nós ou a miséria escondida nos intestinos da alma de todos. Mas quando paramos muito tempo diante de cada uma destas santas representações, a infantilidade do espírito ultrapassa a mera contemplação e quase nos deixa voar pelo imaginário, que está sempre iluminado pela presença ingénua da esperança.
Sob os nossos pés, aqui e acolá, emerge um grito abafado até então pelo pó da história. Nessa altura escutamo-lo encantados, como se sempre tivéssemos sabido que da morte se levantam hinos surdos, à nossa procura, e que nem a pedra que se lhes assenta em cima os faz cair na luz do silêncio.
Em cima, o céu deixou-se esculpir na pedra em formas severas – como se Deus se estivesse sempre a espreguiçar, para com os braços eternamente abertos melhor nos guardar e proteger; ou ainda, para de forma piedosamente infeliz nos tocar a todos com carinho e nos fazer acordar do sonho de existir sem Ele.

As roupas que vestem de negro o silêncio movem-se imperceptivelmente para junto do leito macabro, almofadado para conforto dos vivos na assunção de cumprido o atemorizador dever para com os mortos. O jardim que em redor se desenvolve, em formas curiosamente circulares, quase faz esquecer o significado da cor das faixas de seda que o ornamentam.

O morto, como cidade invisível também, repousa de olhos por outrém fechados, e espera...


__________

nota do editor do blog:

este texto foi escrito no dia 6 de março de 2062, data que já foi aludida antes: o Professor morreu na véspera, dia 5. ainda não é possível determinar com rigor a relação entre este texto e o escrito em 2028. não foi possível determinar também, com certeza, se este texto se refere ao facto do dia anterior, ou se teve um carácter completamente ficcional, que apenas por coincidência macabra se inscreve nessa sequência cronológica. Talvez apenas quando se nos tornar clara a relação real ou possível entre o Professor e o narrador deste texto esta questão seja ultrapassada. Temos em mãos o estudo de algumas cartas que esperamos venham a trazer alguma luz sobre a origem destes textos. Também ainda não foi possível escutar o quarteto de cordas de cujas notas de programa é citada a frase com a obra morre a ideia. Esperamos que o interesse de cada um dos fragmentos que vamos partilhando não diminua pela falta de dados biográficos. Os leitores serão elucidados sempre que alguma informação relevante seja revelada.



(dia 24 de junho, 2028)

II

Ainda bem que nenhum vértice representa o fim, mas apenas uma mudança de direcção. Quando nos sentimos próximos do fim, não temos sequer a ilusão de caminhar para lá de vértice algum; ou seja, o horizonte plano e tranquilo da visão do fim acaba por ser mais perturbador que a sensação de viragem de rumo, mesmo para o desconhecido. Quantos ângulos tem a vida? Provavelmente não será a circunferência a forma mais perfeita, mas sim o triângulo (sem quaisquer conotações teológicas, por enquanto – estou só a tentar compreender as vantagens metafísicas de três vértices ...).
Enquanto penso nesta idiota construção geométrica da existência, medida em vértices de esperança assustadora, a escuridão que me envolve murmura ruídos de lado nenhum, barulhos ínfimos que só se ouviriam por um louco ou por mim, tal a minha concentrada imaginação. Cerca-me o vazio, eu sei, mas o vazio não é só silêncio.

(“As cousas que me cercam, silenciosas,
São almas, a chorar, que me procuram”
Teixeira de Pascoaes )



(dia 24 de junho, 2028)

III

Em fase de revisão? De há quanto tempo, no futuro, me observo? Que pena um personagem não poder partilhar com o seu autor um só momento de mútua existência. Sobrepor-se-iam como dois espectros coloridos? Atravessar-se-iam como fantasmas? (de quem? Mais confusão, por agora não, obrigado) ... No entanto, a perspectiva de um encontro não deixa de ser mais angustiante do que a noção da irrealidade da nossa vida. Ser em alguém (mesmo num futuro interior) não será melhor que Ser em si ?
Futuro interior ... o Tempo aqui dentro bem junto ao nariz da alma, meu caro amigo...



(dia 24 de junho, 2028)

IV

Levanto-me e a manhã sabe-me a cinza, a pó. Talvez seja da madeira do chão, do tecto, ou apenas de mim. Tenho frio. Ouço passos; estou sozinho. Ouço passos novamente. Sobre a cadeira a roupa remexe-se desalinhada, como que acordada de um sonho em que vestia um príncipe. Os passos eram dele, e agora que saiu, ajudo a roupa a encontrar-se consigo mesma, vestindo-a no meu corpo.
Olho para a janela fechada e penso vagamente na hipótese de nada existir para além dela... nem sequer o vazio. Aproximo-me da porta e esta limitação espacial irrita-me. Preferia Ser sem Espaço, ou pelo menos sem Forma, o que já seria suficientemente delimitador. Com um sorriso, ironicamente, a porta convida-me a sair ...
Aceito.
No corredor a ausência de plantas surpreende-me.
Regresso e penso ...



(dia 24 de junho, 2028)

V

O Triângulo apresenta contudo a grande desvantagem de não elaborar satisfatoriamente a ideia de não-retorno. Tento ainda imaginar um triângulo em espiral ...


(ver NOTA)


Mas a não-sobreposição no retorno, apesar de presente, não é definida pelo número de vértices, pois o problema é comum a todas as formas fechadas; é a própria ausência de sobreposição mais importante que a Forma. É pena, pois a ideia inicial agradava-me intuitivamente. Lembro-me do meu autor lá adiante (não sei em que direcção) e penso que a nossa sobreposição estaria sempre correlacionada com a sua morte, pois que eu lhe sobreviveria (como qualquer personagem). E neste momento? Poderia matar o meu autor com este pensamento? Sentirá ele na sua imaterial memória a ameaça da futura aniquilação dos sentimentos?




NOTA: no manuscrito que aqui se transcreve, existia um esquisso, algo rasurado (deduzimos que por hesitação teórica ou falta de firmeza no traço), em que o presumível autor deste fragmento tentou ilustrar o esquema mental a que se refere - uma espiral constituída, não por uma forma elíptica ou circular, mas por uma forma triangular. Diz-se agora que "existia" um esquisso, porque à data em que se tentam reunir os elementos que permitam entender de que forma estes fragmentos nos elucidam acerca do seu autor, descobrimos um pedaço deste mesmo texto, com data por confirmar ainda, no qual não parece ter havido lugar a tentativa alguma de ilustração gráfica. Ainda não foi possível determinar sequer se estamos em presença de momentos diversos do mesmo pensamento, ou simples tentativa de reformulação (na hipótese, plausível por agora, de que sejam do mesmo autor). Sobre a representação gráfica, e dada a quase ilegibilidade do traçado definitivo, perdido entre outros riscos aparentemente inúteis, decidimos omiti-la nesta transcrição, reservando essa divulgação para um momento mais avançado do estudo destes manuscritos.


Jorge Pereira dixit

21 janeiro 2006

8. baloiças a mão


o ar. em volta. revolta-se. e não se entende uma única imagem. que a tua mão. baralha. sobre a têmpora do mar. e não há mar. adiante. e não há estrada nem carros. nem pulsos cortados. nem amor. embrulhado em fatias de papel.
congelado no coração. mexes. a mão. como se dançasses imóvel. dentro das veias. e no sangue. os teus pés. tocando o chão. do céu. estás dentro da tua mão. mexes. e não se ouve. torneiras. gotejando. estás dentro da tua mão. vazia. baloiças. e mexes. e não se ouvem pássaros no céu. e não há noite. e não há. céu. já.

dizes.

quero que todas as árvores. baloicem. e que não haja vento para todos os ramos. e que a minha mão. as destine a um lugar comum. e que não se sintam sós. com o meu castigo.

e a mão. silencia-se. dentro. do corpo. imóvel.


joão dixit

7. testemunha


que sejas. o mar. afogando-te. e que sejas os restos de areia. que a praia. depositou. nos meus sapatos. e que o mar. te veja. como defunto. de um dia que nunca passou. aqui.

e olhando. que nunca se veja. a direcção que tomei. ao longe a tua boca. fala. a tua boca. longe. mora ao lado. da minha. boca. longe. e não se ouve um beijo.

e quero. a rua numa estrada. quero a estupidez. nua. da falha de amparo dos teus braços. abraços. e guardar-te. num eco. deixando a despedida para outro inverno. era um erro.

cinzento. como se fosses a pureza no papel. és um fantasma incolor. cinzento. sem cor. e o acorde esguio. e contínuo. um fá. um sol. menor. e um mi.

o teu gesto. o teu movimento. o teu sono. e o virar de rosto. para o rosto da cama. o teu choque sobre o colchão. engomado pela viuvez. sem esperança da tua brancura. da tua noite. dormindo. e os dedos que me falham. e os olhos que me cegam a mais pequena loucura. de te temer. debaixo. da outra parte do meu corpo. entre as tuas pernas. doces. entre o meu estômago. vazio de silêncio.
como fome. de te comer. todos os centímetros. quentes. da tua sombra. viva.

passam. todas as horas. num dia. de segundo. de segundo. em segundo. até. que se fecham. os corredores. da casa. onde eu. e tu. e eu. e tu. moramos. desfazemos todas as paredes. e contamos os buracos. no estuque. amo-te. amo-te. e atravessam-se. os pés pela terra. que aos poucos aboliu a lei. de oração. e já. não podemos dizer. coisas sobre a parede. sobre o estuque. e todos os buracos.
quantos
visto-me. de ti. e o boato espalha-se. trouxeram-te de volta à terra.


joão dixit

20 janeiro 2006

6. A Razão do Caso


Há palavras lixadas no vocabulário nacional. Daquelas que têm tantos sentidos que deixam um estrangeiro esquizofrénico e só são entendidas em contexto pelos nacionais porque na realidade a esquizofrenia faz parte da nossa portugalidade. "Caso" é uma dessas palavras. A aplicação desta palavra em contextos diversos assume significados múltiplos que só os portugueses conseguem descodificar.
“Ter um caso”, por exemplo, implica necessariamente a presença de alguém que partilha esse caso connosco. Para se ter um caso, tem que se ter um caso com alguém. Nunca se pode ter um caso sozinho, ou na pior das hipóteses pode-se, mas teremos simultaneamente de “ser um caso clínico”.
Quando dizemos “um caso sério” já não estamos a falar de relações fortuitas entre pessoas, porque “ter um caso” é algo que, supostamente, não é sério. Se fosse sério não seria um caso. Seria uma relação. Isto significará portanto que qualquer relação é “um caso sério”.
“Não fazer caso” é algo que fazemos sozinhos sem que nos acusem de padecer de qualquer desarranjo mental desviante. Mas é algo que não podemos fazer numa relação sob pena de nos acusarem de falta de atenção. Se tiverem uma relação, sigam este conselho: façam muito caso, mas daquele sério, ok? Porque se for do outro não terão essa relação por muito tempo. Adiante…
“Estar a trabalhar num caso” não significa estar a arrastar a asa a alguém. Implica desenvolver uma profissão normalmente ligada à área jurídica, ou de investigação policial. Se ter um caso é algo que se desenvolve como exercício de lazer, trabalhar num caso implica uma especialização profissional.
O caso também pode ser entendido como causa para um determinado efeito. E aí chama-se “caso para isso”. Por exemplo, um homem descobre que a sua mulher teve “um caso” com o padeiro, fica muito enervado, acha que aquilo é um “caso sério” e fica prontinho para arrear um camaçal de porrada naquele cabrão enfarinhado. É nessa altura que um amigo lhe diz “Oh pá, não é caso para para estares tão enervado, deixa lá as coisas connosco que a gente esta noite rebenta-lhe com a padaria toda”. Se o cornudo “não fizer caso”, alguém no dia seguinte vai “trabalhar no caso” da padaria que implodiu no centro da cidade. E explicar isto tudo a um estrangeiro?


Humor Negro dixit

5. A Razão da Coisa


Falar da coisa não é coisa fácil. Apesar da coisa ser a forma mais fácil de falar de muita coisa. O que é certo é que crescemos com a coisa. E quando a coisa nalguma altura das nossas vidas não correu bem, houve sempre qualquer coisa que safou a coisa. Ou vice versa.
Habituámo-nos a muita coisa ao longo do tempo: aquela coisa política, aquela coisa privada, aquela coisa pública, aquela coisa estúpida, aquela coisa inexplicável, aquela coisa importante, e um sem número de coisas que nos chateiam, que nos aborrecem, que nos fazem felizes e nos fazem rir, mesmo quando a coisa não tem piada nenhuma.
Não estou obviamente a falar das coisinhas, que também têm a sua importância, mas não são a coisa. Nem sequer falo do coisinho, sempre insignificante, mas simpático. Muito menos do coiso, que tem lá o seu lugarzinho cativo a caminho de uma coisa qualquer.
Estou a falar daquela coisa que cresce connosco, que nos acompanha no dia-a-dia, e que torna a coisa numa coisa diferente. Quantas vezes não viram qualquer coisa numa determinada pessoa? Quantas vezes não vos ia dando uma coisa? Quantas vezes não vos apeteceu dizer uma coisa? Quantas vezes não vos apeteceu... qualquer coisa? E quantas vezes a coisa não ficou por aí mesmo...
A verdade é que há sempre qualquer coisa que não é uma coisa qualquer. Ou a falta de qualquer coisa, para a qual procuramos uma coisa qualquer. Uma coisa é certa: ter mão na coisa não é a mesma coisa que ter a coisa na mão. E isso faz toda a diferença se pensarmos bem na coisa. Há coisas que, de facto, nos fazem pensar que há com cada coisa...
Que coisa!


Humor Negro dixit

4. A Razão do Feng Shui


Depois de ter sido verdadeiramente massacrado por um amigo arquitecto, que insistiu que eu me devia imbuír do espírito de Feng Shui para criar energias positivas numa vida que não me andava a correr lá muito bem, decidi fazer algumas alterações na minha casa, seguindo rigorosamente os seus ensinamentos:

Na entrada pendurei um Ba Gua raso. Não fica lá grande coisa e dá um ar folclórico à entrada mas é suposto ser um catalizador de excelentes energias. Disso e do couro cabeludo que lá deixei por ter pendurado aquela merda muito baixo.

Na maçaneta da porta de entrada pendurei 3 moedas chinesas numa fita vermelha, para atraír “dinheiro auspicioso”. Passam a vida a roubar-me as moedas, e eu passei a ser o melhor cliente da loja dos chinocas na esquina do meu prédio.

Comprei dois cães Fu em porcelana que coloquei do lado de fora da porta, um de cada lado, para guardar a casa. Os vizinhos gostam de lhes mandar uns violentos pontapés.

Instalei um pequeno lago artificial na varanda da casa, onde coloquei 8 peixinhos dourados e um peixinho preto. Era suposto o peixinho preto atraír tudo o que é negativo e indesejável, mas o sacana do peixe desatou a comer os peixes dourados e eu gasto uma fortuna a substituí-los todas as semanas. O peixe preto está tão bem alimentado que a varanda já começou a dar de si.

Nas traseiras da casa, na ponta do lado esquerdo, mandei construír uma cascata ruidosa. A cascata é suposto fazer correr mais dinheiro. E aparentemente funciona: com as indemnizações que os vizinhos me pediram a minha conta bancária parece mesmo um rio a escoar.

Dispus plantas de flor vermelha ao longo do corredor, em grupos de 3, até à porta de entrada. Já escorreguei várias vezes na merda das folhas e na última das quedas deixei de poder virar o pescoço para a direita. O ortopedista diz que é permanente.

Apontei uma luz no lado de fora para a minha porta de entrada de modo a estar iluminada durante a noite. Desde então passo a vida a explicar aos bêbados locais que a minha casa não é um bar de alterne.

Atestei todas as divisões da minha casa com plantas de folhagem verde em formas de moedas. Ainda estou para perceber que porra de efeito é que faz a forma da merda das flores.

Para criar um constante fluxo de energia mudo a minha mobília de sítio todos os dois meses. Um processo cansativo, e que requer muita energia para levar em ombros aquela porcaria toda. À conta disto, os vizinhos do andar de baixo fazem manifestações violentas à porta de minha casa e destroem-me sistematicamente os cães Fu.

Frequentemente limpo os meus armários da roupa, que ofereço à minha empregada ou a instituíções de beneficência. Segundo o Feng Shui manter roupa usada no armário interfere nas energias, tipo “bate na válvula e volta pra trás”. Estou a ficar sem grandes opções de escolha, vou ter de ir aos saldos brevemente.

Deixei de ouvir os Da Weasel e agora só ouço música com sons de floresta, de mar, ou de chuva a caír. Junto-lhe uns pauzinhos de insenso para dar um cheiro relaxante ao ambiente. A polícia já me entrou pela casa adentro algumas vezes julgando tratar-se da sede de uma seita Koreshiana. Pouco falta…

Pintei a minha caixa de correio com flores de cores garridas. Ficou foleiro à brava, mas assim não corro o risco de receber más notícias.

Retirei o espelho do tecto do meu quarto (mas mantive a cama redonda) e acrescentei espelhos em todas as divisões pequenas da casa, para criar uma maior sensação de espaço: confesso que ainda não me habituei a ver-me ao espelho enquanto estou sentado na pia.

Era suposto eu estar em paz e em perfeita harmonia com o que me rodeia, atravessado por uma onda de energia inexplicavelmente tranquilizante, mas não! Estou uma pilha de nervos, a minha casa parece ter sido decorada pelos chineses contorcionistas do Circo Chen, os vizinhos dão-me cabo da cabeça, o peixe negro já parece uma toninha, e a minha vontade é de contratar uma tribo somali feng shungueira que dê um andar diferente ao meu amigo arquitecto. Raizupartam!



Humor Negro dixit

19 janeiro 2006

3. A Lembrança De Dagmar


Por quê você viveu assim todos esses anos ? Quem lhe disse que em algum dia fomos um único indivíduo ? Pensasse de outra forma e não haveria sofrido tanto, meu querido. A vida é respiração brusca, instinto aborígena que salta da boca estática e vai, petulante, saturar-se na loucura de outros suspiros não menos excepcionais. Começam sempre humildes e condescendentes, depois se transformam, instante seguinte, em fome de facas e ciladas.

Enquanto eu tirava de você a vertigem e a fé, fui deixando afagos verdadeiros mas um pouco retardatários, e que hoje, certamente, se encontram diluídos numa crença esquisita que só a você pertence.

No nosso idioma quem amou deixou a vida fazer-se num traçado de fidelidades. Eu nunca amei você, e você sabe disso, mas também não lhe tive ódio, apenas assombros. Os dias, os anos passados a seu lado me tornaram pequena. Na verdade me transformaram em algo inimaginável para alguém como eu que teve sempre a alma voltada para os riscos. Cada vez que lhe pertencia, mais me afastava dessas coisas. Um açoite. Você não as entendia, nem eu seus desamparos. Talvez devemos isso a debilidade natural dos receios e ansiedades que sempre nos caracterizou. Na súbita busca de permanecer no tempo e fugir dos limites da terra, fomos assegurando nossos segredos. Vê ? Quem disse que em algum momento não fomos uma única pessoa ?

Que você continuasse amando foi sempre o meu desejo. Até para poder comparar as melancolias, nossas cúmplices. Mas para você não arder no mesmo espaço, peço-lhe que procure não entender minhas labaredas. Isto fará que você sofra menos e ponha os olhos nesse coração sacudido entre respirações e soluços. Alguém morreu, pode ser. Mas há muita gente fazendo perguntas semelhantes as suas, mastigando freios e carregando palavras compensatórias. Não percebe, meu amigo, que esse nunca foi meu grito ? Vá lá, da minha blasfêmia, quem sabe você não encontra os vestígios da sua estrada.

Como fui eu quem se desvencilhou, cansada da sua língua e do seu ruído de existir, quem procurou ao longo desse tempo se consertar e se nutrir. Fui sim, e sem remorso algum, executar as crenças que aprendi do mundo. Eu vivo, eu resisto, enquanto os outros preferem aguardar o que vem pela frente. E isso, de alguma maneira, me torna diferente. Resistir é estar adiante, e não me deixa cativa desse invólucro que não permite que separemos ordenação de sonhos. Essa é hoje a minha casa. À força de nunca mais ter que sentir náusea, sou meu próprio esquecimento, meu antepassado. Se estou menos garra é porque fiz nascer em mim outras geografias mais angulosas e menos transparentes. Se a antiga paixão apodreceu em mim é porque dentro da minha garganta outros nomes, outras tardes, outras espessuras quiseram saltar. E eu deixei.

Como desaprendi a ser aquela humana que você um dia conheceu, não sei se devo continuar lhe dizer palavras. Tudo fica muito precário. Abstrato. Depois que fui embora resolvi parar de depor a vida. Porque me tornei farta, não preciso mais surgir à cena com os meus encantamentos. Eu sou a própria volúpia. A extremidade do cio e a saudade de um corpo ao qual você se condena. Eu circulo, próxima as portas entreabertas de homens adverbiais e também esperançosos. Perscruto essa espécie rara que ultimamente vem se desdobrando à minha frente. Ali meus gritos tem cor de sangue e as promessas não são perversas, não sugam nem colam-se futilidades às alturas. Ali eu sou santa e loba e uivo com os olhos pregados no céu das queimadas.

Meu amor, neste outubro dissolvente venho me lembrando de você alguns dias. Mas procure não reacender seu interesse por mim. Este registro é saudoso, acredite, mas descose qualquer uma de suas falas. Se para você é dolorido me ler, saiba que a pena aqui também não se retrai. Mas não é coisa de morte nem partilha seu caminhar. Ainda crendo haver uma desordem nisto tudo, lembre-se que da carne de uma mulher nascem homens, e eu quase lhe pari. Estendi-me ao seu lado como alimento e medida, lhe quis matéria e você, vida. Eis aqui nossa condena. Jamais conseguiríamos saciar essas sedes. Mas você insistiu, e eu lhe penso. Por isso me lembro. E escrevo para lhe dizer que enquanto estive contigo fui um resíduo de transgressão, apenas uma página de lascívia. Água parada, nua, entre os móveis da sala, mas nunca pelas paredes.

Sem nenhuma conexão com seu extremo meus dias ficaram indisciplinados, precisando forjar uma consciência de espera não mais insuportável ou sobrevivente. Movo-me sem meu filho que não saberá que atrevessei o riso e dei em terras mais espessas, e tudo isso sem ele. Meu filho... Acima da demência, rente ao pescoço, triturando-me de explicações cada dia eu intensifico esse susurro. E tem cor, sombra e vestígios de mim. Que um dia ele me poupe desse desperdício.

Deixe-me portanto às devorações das brevidades. A mulher que lhe parecia adequada veio lhe dizer adeus. Das horas atravessando nossa cama também me despeço. Em algum momento eu tive o rosto repleto de rios e pássaros do paraíso. Hoje eu temo que o amor seja feito de alagadiços e instantes jubilosos. Será que o passar de línguas sobre meu ventre murmuram outras voracidades indizíveis ?

Para você, a alma. Para mim, a chaga. Não me culpe, mas sim seus desempenhos. As paredes e o esquecimento enclausurado num corpo que há muito se havia ido. O tempo girando, sustentando o que nos redimia, as águas e o vento que não surgia. Uma eternidade de falsas rimas, e eu, ainda, me perguntando o por que.

Fui infiel. Me rebaixe até onde não possa mais. Me desterre. Na fartura ou na colheita, ou mesmo em torno desse seu novo consumo, me rebaixe. Depois de ter amado a mistura de um outro homem eu ultrapassei essas funduras. Para mim nada mais é abismo nem se acaba com rotas palavras. Eu encontrei o humano, meu querido. Encontrei os atributos dessa catarse que às vezes cega, às vezes se desgasta. Mas é transbordante e avança sempre. O humano vem substituir as cores, tragar, vencer e até fazer distâncias. E se você precisa de chuvas, eu preciso de relâmpagos.

Hoje eu consigo tangê-lo, atribuir-lhe legiões de gostos que certamente não teriam nascido em nossa casa. Posso arbitrar, suceder e penetrar na exaustão das unhas que correm pelos meus cabelos porque a dor não conta mais. Só os espasmos e o desalinho desses ingredientes que exijo do homem que repousa junto a mim. Não são ânsias, mas privilégios. Insaciáveis. Suores nas nucas sinalizando uma bastança que a nada mais se submete.

Suspeito ter morrido pra você antes mesmo que nos conhecessemos. Suspeito ter sido ultrapassada pelos descompassos. Tenho tido noites extremas, mas continuo me tocando. Crescendo no risco e transitando entre vidas que correm à minha frente. Depois que fui embora, depois que amei quem quase me matou de rancor e desencanto, resolvi não cantar mais cotidianos. De certa forma aprendi a me carregar e sobrepor à ausência dos que tentam me encerrar com gestos secos e sobreviventes. Quem me desenha agora sou eu, e os meus tornozelos estão descobertos porque eu quero que fiquem descobertos, e não mais por exaustão de amor.

Alguém sonha comigo, mas antes que eu o encontre me pergunto: não seria mais adequado luzir dentro do meu peito e extrair dele uma série de outros inventos? Já experimentei somas, e foi pouco. Tive encontros subterrâneos que ruiram com o tempo, nenhuma âncora nem homens que se reiventam. Os corpos que possuí estavam em mim, ou quando muito à ponta do meu zelo. Com esta genealogia prefiro mesmo desaparecer e manter-me essência, carne, pêlos e intestino. Porque sempre que sumo, me refaço.

Prometi não me entregar mais aos náufragios. Na verdade às luas masculinas, que arrastam para a sombra seus carregamentos sinistros. Por isso meus dias agora ardem de estremecimento. Cruzo ruas e empurro para longe os sorrisos amarelos, os atos especiais e as demandas que escapam pelos dentes. Passo diante dos homens assim como quem atravessa as manifestações de palavras encadeadas. Fico olhando, fico ouvindo enquanto minha outra metade fita o mundo, a terra e as tardes inundadas de bocas e umidecimentos. Gosto do som de homens que se molham com essas coisas.

Assim está minha vida. Não era isso que procurava saber ? Se quiser me perguntar também como estou lhe digo: vou sucedendo. Talvez não consiga lhe explicar a natureza dessa jornada. E como nunca lhe jurei nada, juro agora pra você que sem nenhum ressentimento. Fui mergulhando cada vez mais fundo neste encanto necessário, ora me perguntando se era gemido que precisava, ora se pausa para dispersar as coisas que me atormentavam. Fiquei sozinha, sem que ninguém soubesse. E foi este segredo que alimentou meu silêncio. Tenho bons amigos, com alguns até me deito. Tenho gozado, mas não me prostituí como supõe meu pai. Pulso, sem precisar fazer nada urgentemente. E me concentro quando tudo parece perdido.

Agora paro de lhe escrever. Uma vez ou outra, sempre mais raramente vou continuar a fazê-lo. Não que eu queira deixar tudo sempre em suspenso, mas é que eu preciso às vezes me lembrar como se fazem parcos, irreais, os traçados que impomos à vida. Tocar a boca ? Só se for úmida e cheia de sobrevida. Devo estar com saudade de mim, e isso não se conjuga apenas à carne, mas também à caminhadas.




Ilidio Soares dixit

2. Dagmar Não Soube Esperar


Amor chagado, desse que tritura a vontade de uma vida inteira. Peito em dissolvência, que adentra o cerne das gotas de suor na nuca, real e instantâneamente. Poderoso. Capaz de deixar a boca afogando-se na carne abundante dias inteiros. Quando se vai, leva a eternidade e deixa uma corrosão.

Esta era a matéria sedutora que ela queria trancar numa vasta e pertencida agonia, mas a matéria devolvia-lhe sempre o mesmo rosto porque vinha de uma luz que não lhe pertencia. Era coisa primitiva. Dessas que andam na rua, nos mercados, fugidía e não se avizinha seu nascimento.

Dos poucos amores que seu quarto habitou nenhum produziu fonemas, uivos e unhadas nas costas semelhante àquele que se meteu no negrume de sua alma sem fundo. Deitou-se com ele várias vezes. Mas se chegarem gentes com suas línguas escancaradas, dirá que sobre suas fartas ancas apenas seu marido repartiu o instante convulsivo. Um homem que para ela havia se transformado nos últimos anos em apenas um passo no grande passeio que pretendia para a vida.
Olhando o futuro - e a nitidez da mirada de Dagmar não se perde na penumbra nem no nome dessa passagem - ela dobra-se num pulo e expõe as nádegas para ser pertencida de maneira espessa e sem palavras. Do amante ela só aguarda estocadas profundas e bocas tortuosas, pele e ruínas. Só através desse ponteiro de ébano esguio é que ela consegue emergir da condição terrosa de mulher esculpida com um rosto vazio. Só assim ela volta ser a menina que viveu em agrandados vestíbulos, mucamas, prenha de sonhos e relâmpagos nos olhos iluminados.

Dagmar nunca se aquietou. Na agonia de ser uma fazedora de caminhos e genealogias - desde de pequena gostava de se perder nos intentos porque essa era a única forma para atravessar os dias que só lhe armavam ciladas - faria um barco que moldasse o encantamento dos seus mitos e sustentasse o fogo para uma vida de partidas. Seria extrema, e condenaria a saudade a um resto insosso de decifrações de ruas, vilas, odores de frutas e lençóis quarados. No início da adolescência colou-se à compaixão, mas não àquelas feitas nas igrejas do seu Rio de Janeiro de 1909. Foi ativa, cheia de atalhos, porque queria chegar rápido às soluções e tomar de assalto a infelicidade dos que sofriam. Dagmar entrelaçava-se com os amigos, nas suas caídas e nas raízes das suas angústias. Raro para uma moça da sua época.

Mas o mundo não estava mais na infância. E Dagmar percebeu isso quando seus pais lhe apresentaram um jovem médico vindo do interior de São Paulo. Culto, equilibrado, bem aventurado, desses cuja a esperança parece desprender-se do pouco que ainda se é, e vai para além da vontade do que se delimitou querer. Desde o primeiro instante ele ficou refém do fogo e da lua de Dagmar. Mas como a paixão era a sós, à espera de uma fome que ela não entrevia o contorno, a união se resumiu à vontade dele e no deixar-se amar dela.

Envolta na poeira daquele começo, repensando as coisas que atravessam as idades e não nos deixam mais voltar ao barro inicial, Dagmar murmurou que aceitava o casamento. Se na infância o mito resvalara o mundo, agora o vento da fala real de um homem avançava sobre seu quadril, lambia-lhe os inumeráveis segredos, mas um grito de voracidade vindo da alma aquele homem jamais ouviu sair de sua boca. De entender o porque daquela decisão não lhe havia sido dada a hora. Mas foi esta a condição que Dagmar escolheu aos dezessete anos para não se tranformar em mulher.

Deixando para o futuro a resposta de seu ato, ela não percebeu que o medo a impediu de ver que desde o começo já existia algo de remendado naquilo tudo. De perversa e incontrolável semelhança. Porque entre os atributos diletos de sua família, acatar o possível era mais digno do que tentar ir-se mais longe na diversidade. Portanto as viagens, o viço, os pomares e o transitar por outras vidas estavam condenados a ficar guardados nas rugas da sua testa.

O desencantamento começou a surgir nos primeiros meses de casamento. As doenças em seguida. Aos dezenove anos dores agudas na coluna transformaram sua rotina em idas e vindas do farmacêutico para aplicações de morfina. Único alívio, moldado ao seu tempo e circunstâncias. Como ela mesma chamou esse período, esta foi a época das paixões. Enterrando-se na mais alta constelação do vício e resistindo a correnteza de um espaço agastado, Dagmar foi criando uma lesão na coxa que não desaparecia da pele porque não era mais a pele que comandava-lhe a vontade. De alguma maneira ela pedia que a dor se refizesse para depois ir ajustando-a às ilusórias sobrevidas que a droga provia.

No sofrimento ou na vigília, mas com os olhos pregados no mulato que lhe alisava a perna e enfiava dentro do seu corpóreo o solvente da dor, Dagmar percebeu que ele poderia ser o homem que viera das terras que nunca visitara, trazendo-lhe uma medida que até então não experimentara. E foi.

Seu nome não importava. Ele simplesmente cintilava, tinha cheiro de capim e reacendia sua existência com a execução das picadas que penetravam no oco permanente que os anos de casamento construíram. No início, como quem só quer ver e escutar o coração da semente, Dagmar guardou para si o axioma do frêmito e seus princípios.

Não dizia nada, sequer esboçava nos olhos o espanto de haver identificado a distância que a separava do seu jovem esposo. Uma extensa fome de afagos, tão estilhaçada, tão rastejante que somente a droga foi capaz de desvia-la do caminho de desperdício. Como esposa, trancou a cancela da estrada, mas, no consumo feroz de querer se transformar definitivamente em mulher, abriu-se adequadamente numa tarde inquietante de insetos e odores.

Sem vestígios nem soluços agarrou a mão do seu curador, e com um olhar baço que nada condena nem justifica, puxou-o para si na esperança de tingir com beijos a tarde flutuante. Se fosse noite, o úmido cio adormecido se rebelaria com vozes que o coração não consegue separar. Finalmente o invólucro se rompera. Porém, por descrer da consciente espera, lançou-se vagarosamente no sopro de um homem que a terra não desgastou. E esse homem foi cavando o casulo do seu silêncio com pouca garra e muito encantamento. Palavras não proferiu. Os sons da sua boca vinham de um sumo apropriado aos adornos. Recheado de risos e uns, estendeu-se na nudez devastada pela resistente espera, perseguiu a retração das suas buscas e farejou o charco e os dejetos de sua antiga vida inteira.

Dagmar amou esse homem por quarenta tardes. Se ele apenas tivesse tocado seu coração, se tivesse apenas posto a língua nas suas águas vacilantes como um bêbado desnorteado à beira de um mar de espumas, Dagmar não superaria o cansaço de haver se tornado mulher. Mas ele foi além. Foi não querendo ser raíz das suas escuridões e dando gargalhadas deliciosas que esse homem, sem nome e sem razão, transformou a astrologia do seu destino em altura sensível para os dias imóveis.
Não pretendendo ser salva, nem recusando adivinhar-se na pura distração, Dagmar despejou sobre ele as coisas que não se submetem as coisas dos homens e ficou junto dele durante os dias daquela razão.

Mas como a paixão se move e está presa à metáforas, seus viventes se descompassam tentando penetrar nas camadas que encontram naqueles vêns, e cujo conhecimento se tece com risco e prenúncios. No traçado múltiplo que não cabe na margem das coisas que não são contadas. E, por isso, de novo as metáforas. Tem sido este o desígnio dos que se descosem no mergulho que iniciam dentro de outro alguém e tomam para si os desvãos da sua dependência. Para muitos essa coisa que ultrapassa o impulso de existir preserva entre as coxas um lixo ou a parecência do eterno. Para Dagmar era um gemido surdo.

Considerar a esperança ¾ que ampara a inteligência e suaviza a ansiedade ¾ como único recurso para evitar a destruição que a ausência de um beijo definitivo e que se enterrou no coração provoca, é acreditar cada vez menos na carne humana. É desaprender o sentido dos pelos, das perplexidades que nos causam cada vez que vamos até os poros, nitidamente nas intersecções, nas falhas, cuja umidade supera a literatura de qualquer coisa gordurosa ou alegre de vida. A esperança, dentro de uma garganta apaixonada, não prende nada. É uma barca ardendo sobre lágrimas fúteis e que tudo afasta.

Foi pensando assim que Dagmar escreveria mais tarde: todos os momentos passados com este homem, na ilusão inevitável de que tudo viria dele, e onde meu prazer era não ter mais que dormir, mesmo nos dias sossegados das minhas névoas, não ter que conceder nada além do que um gesto exato, no território livre que escolhi para ficar ao seu lado, perder as medidas de quem sou e também aos olhos de quem me vê, ser a fuga ou o movimento sem rumo de uma lua sem terra, de certa maneira ser sua amante mas temendo ser sua filha, pela magia ou pelo remorso. Aproximei-me bem rente desta queimada e apreendi com a carne jubilosa a transgressão. Defitivamente esse homem me descobriu.

Empoçada de tempo, Dagmar atravessou aqueles dias sem nenhum apresto nem ordenação. Chegou à inquirições, até a náusea, aos vínculos expostos, que na execução de um casamento esfriado são respondidas com um sim ou um não. Numa linguagem que despreza a própria culpa, dessas que se constroem na passividade doméstica, ela foi juntando num espaço também doméstico as tardes flavescentes, os dedos molhados, as geometrias, frestas e ardências. Nada mais era preciso contra a esperança. Ela estava viva e além da concepção que separa o corpo da alma. Numa largueza de razões, amena, e sem nada para lhe truncar o insaciável vício de viver, Dagmar amadureceu.

Em seguida foi comer sua descendência, largando fora as profecias preconceituosas que abalavam sua épcoa. Aprendeu a falar com o mundo, deixando-lhe palavras e levando suas vertigens. Imersa em tanta alegria, tirou do seu interior idéias de outros temas, poesia, a contenção dos dois anos e foi-se embora.

Quando seu homem partiu, após as quarenta tardes, Dagmar restaurou a coragem que não descolava da sua danação. Sem se retrair nem se esguiar das sombras que se enfrenta no abandono, ela emergiu dos seus guardados e jamais regressou àquela casa. O desespero, ela deixou para o residente de semblante satisfeito e acomodado. Dela não se ouviu mais falar. Seus pais engendraram uma história de loucura e suicídio, enterrando-a no sótão da memória familiar sem explicação e sem jamais terem-lhe suspendido a pena.

Nessa relação de bens em partilha a prioridade é para tudo que possua vida. E foram essas coisas que Dagmar deixou para trás. Amor, ódio e separação. Nessa hora as coisas de um homem são mantidas em desempenhos, na largueza de uma corrosão que requer outro tipo de sofrimento. Necessita uma linguagem pessoal, raramente evidente na esfera dos abandonados. É o tempo das precariedades, onde matamos ou morremos sem nenhum argumento; se preservamos ou não os filhos, se a lentidão do drama que vai moendo a noite inteira é provisória ou se multiplica. Essas intimidades se intercomunicam há milênios, e não poderia ser diferente no caso do abandonado. Ele sofreu pelos olhos, na inocência ou incapacidade de não ter permeado aquele sonho, pois o movimento do seu amor não foi resistente aos círculos de Dagmar. Seu descuido levou-a embora, perdeu luz, o ritmo e as decifrações que tanto perseguiu.

Chegou a acreditar numa emboscada de baixos sentimentos, mas largou essa crença por outras voracidades. Quis voar, quis tocar a demência, temeu seus limites e voltou como ave retardatária ao poente daquilo tudo. Dividiu o amor em partes, morreu de saudades, sacudiu a loucura e deitou-se no tempo que tritura os dias de antigos encantamentos.

Quinze anos após a partida de Dagmar, aos trinta e sete anos, ele escreveu a um amigo de São Paulo: à Deus não ouso nada. Desgastei-me no trabalho que sangra ou cava a terra. E meu único infortúnio foi não ter alcançado Dagmar. Despejado da sua aventura, obriguei-me aos meus lugares. Para manter as coisas de homem e o filho que ela me deixou considerei-me vencido porque não lhe compreendi o rosto inteiro, nem sequer o cheiro do seu vulto. Ela foi além do meu amor abstraído. Depois do espanto de ser deixado à margem de uma fartura que era só minha, casei-me novamente numa rotação contrária ao conforto inicial. Devastei-me entre paredes, pousei as esperanças na fome extrema de outra mulher que, orgulhosa por revolver-lhe o umbigo, cuida de mim até hoje. Tivemos dois filhos e toda a condição para entrarmos na morte com plenitude e vislumbre. O corpo que ela me regalou ensinou-me a entender Dagmar, a contá-la e dividir meu exílio. É uma pena que só agora tenha conseguido me libertar da alma. Pena que Dagmar não me aguardou.




Ilidio Soares dixit

18 janeiro 2006

1. hip.ó.te.se.nu(s)@

*(se me dessem corda girava)*





porque não hão-de as histórias ser contadas se essa é realmente a sua natureza? estamos sentados à beira de um qualquer rio, num final de dia húmido. a proximidade da água dá-te aqueles tons que só existem assim. quando a água está tão em nós que quase nos desagua nos olhos em lodos profundos. nos teus emergem segredos que não querias que soubesse. é cedo, eu sei, penso. é tarde, dizes. escondes essa tua urgência de homem por detrás das lentes e espelhada passo a ver-me apenas a mim. não deves contar das coisas pelos nomes, continuas, é perigoso contar das coisas assim.
invocar, evocar, convocar: penso. como se a boca fosse um enorme buraco de fechadura. e eu espreitasse. espreito. as portas que de portas saiem, entram noutras dimensões. pertencem à memória.
inventada, dirás mais tarde,
com a tua incrível alegria de viver constróis mundos dentro de mundos. e a verdade? perguntarás também, ora, a verdade,
que coisa mais chata a verdade...será que queres ouvir falar da verdade? é que costumas morrer à segunda feira de manhã e acho mesmo que não é uma verdade que te ressuscita.

por exemplo: é verdade que também eu como o lobo antunes hei-de amar uma pedra e que essa verdade é uma metáfora insidiosa tão feia tão feia que prefiro dizer também eu hei-de amar uma pedra e pensar que o granito seria uma pedra amável.

a minha bisavó belisanda era uma mulher de fibra. dizem. porque nunca conheci ninguém que a tivesse realmente conhecido invento-lhe uma história dentro da minha própria história.
que é como tu dizes uma prodigiosa acrobacia de memória
e oplá, eis que em equilíbrio me aparece uma mulher de fibra transmontana, como só as graníticas mulheres transmontanas podem ser. o que dela me chegou às mãos são os lençóis de linho. dizem que fiados tecidos e bordados por ela. eu acredito e muitas vezes tiro-os da arca perfumada de alfazema que também sei ser o cheiro que ela escolhia para os perfumar e deito-me com eles na cama.
nessas noites a verdade da minha bisavó belisanda vem ao meu corpo. é sempre verão. cheira a esteva quente. e há águas tão mansas como rios e beira rios onde
eu e tu nos sentamos
e costumamos falar. por exemplo
tu dizes assim
gosto tanto de ti e acredito.
eu fico parada a tentar encontrar-me um nome que te explique o que realmente sou e pode ser amável. uma transmontana na transumância dos dias
cheiro a esteva e a mulher a quem os pés servem de asas. não há mistério maior que esse que uma mulher reserva para um homem. e isto eu aprendi enquanto te ouvi dizer
acredito
que não há mistério maior que uma mulher quando ama um homem.
depois seguras a minha mão e sobes pelos meus dedos como se quisesses sustentar o teu corpo todo no meu. sabes,
eu também por cá ando à procura de sustento para o meu. mas isto é segredo.
não contes a ninguém.

há muitos homens que dizem palavras capazes de agarrar dedos mãos olhos corpo todo. um diz escrevo para um pé nu baloiçando fora de um lençol. parece ter a vida toda assolada por essa nudez. é que até uma nudez pode ser escandalosa
dizes tu
tentando assim justificar porque não me devo desnudar a alma
deixando-a baloiçar
fora do lençol da minha bisavó belisanda. mas é
linho fiado tecido e bordado por ela. entendes,
casa. é casa. e nada de mal pode acontecer-nos quando estamos em casa
pois não?

eu escrevo para esses lençóis de linho. com iniciais bordadas que nunca poderiam ser as minhas. mas agora o bê é de blimunda. e de belisanda. nomes tão improváveis como as mulheres podem ser quando amam um homem e
é ele quem as nomeia.

o meu bisavô era joão baptista e dizem que nasceu com esse poder que fazia com que as mulheres desejassem o que o seu corpo todo de homem santificado pelo amor oferecia. a todas concedia um nome e a todas acreditava ter amado. morreu na cama de uma criada enquanto a montava gritando lucrécia, lucrécia. a bisavó belisanda entristeceu com tanto nome. e parece que durante muitos anos eliminou do seu vocabulário as palavras começadas por ele. por isso a avó, a minha avó, de milagre de lourdes passou a mariazinha.

a minha mãe herdou o mariazinha. para o irmão e para o meu pai parece nunca ter crescido. foi sempre mariazinha.
o que é estranho é eu não me lembrar de conhecer a minha mãe sem ser já crescida. vejo-a nos retratos a preto e branco. olhos enormes, um laçarote branco a agarrar duas tranças e a minha prima bébé nos braços e digo, esta é a minha mãe. mas na verdade não acredito. porque a mãe que conheço não é mariazinha. a não ser claro para o meu pai. e para o irmão. mas o irmão morreu. sobrou-lhe essa infância prolongada só para o meu pai. sorte é a minha mãe não chamar filho ao meu pai. então seria muito mais difícil eu pensar que tenho uma mãe que se chama mariazinha.

porque há mulheres que dizem filho e querem dizer amante. são assim como umas enormes aves chocadeiras que por debaixo das saias constróiem ninhos onde arrumam ovinhos para omoletes com cebola e salsa e filhos e maridos que são tão frágeis como homens. tão frágeis como os homens quando amam. depois os filhos e os homens crescem e nem sabem como hão-de olhar as mulheres por debaixo das saias. ou então são assim como o bisavô joão baptista e amam as mulheres todas como se as quisessem nomear com nomes tão improváveis como lucrécia. e montar. para se recordarem de existir à luz do sol todos os dias. excepto à segunda feira de manhã quando escolhem morrer por um bocadinho. é que viver sempre também cansa um homem.

são estranhos os homens. assim tão estranhos como as mulheres. por exemplo
quando dizem coisas assim

que tempo faz neste verbo
quando os olhos sem as palavras
guardam em silêncio
o inverno de junho?

podemos nós cair no céu
assim, manchados de tinta permanente
na camisa e nos dentes?


e que te fazem pensar em enormes escritórios na penumbra e ele escrevendo-se por entre a angústia de uma manhã de segunda feira em que se deixa morrer por um bocadinho. só para descansar a vida. em redor levanta-se esse céu encadernado em que cai quando se sente apenas uma palavra. de permanente só a cor que a irisa. e nos dentes as carnes macias de uma mulher. porque a única verdade que pode ressussitar-te é o amor de uma mulher. e esse adormece muitas vezes embalado por águas mansas, tão mansas que mais são os rios em que a memória se dá. eu sei porque vi no espelho dos teus olhos as minhas águas mansas adormecerem-te. por dentro dos teus olhos um nome chegou a aflorar. mas não o disseste. assim
as segundas feiras são sempre dias em que as manhãs te matam. é só um bocadinho. mas chega para te deixar um buraco em forma de corpo.


quando a minha bisavó belisanda amou o meu bisavô joão baptista deve ter sido verão. e as carnes dela deviam ter essa cor de trás os montes quando o sol dá nos penedios e se espalha pela esteva. sobra sempre um cheiro muito a quente e a campo livre e a mulheres de saias amplas roçando pela terra. imagino que como eu gostasse de andar descalça e sem cuecas. e que o joão baptista nunca tivesse cheirado uma mulher tão bonita. a avó belisanda era como os bichos quando esgravatam no chão para fazer o ninho. toda cheia de terra e de céu desejou para ela aquele homem de olhos azuis e cabelos de vento. parecia ter uma liberdade dentro de si que lhe dava uma qualidade de ave. ao voar dentro dela o seu sémen renomeava-a a cada vez que se amavam. e quando ele saía de dentro dela
lenta lentamente
ela dizia
sobra-me sempre este buraco em forma de corpo.








há homens que quando conhecem o mundo por dentro das mulheres
conhecem-se a si mesmo
de uma forma nunca esperada. e então a vida acontece. e a morte é mesmo morte. não é uma qualquer segunda feira.
eu sei de um homem que diz

diz-me de tudo como no ventre
o eterno retorno, a respiração
por dentro, os romances e as personagens
por quem te apaixonas, que te amam.
diz-me, ou então fala, que eu escuto


e por dentro de mim então
com todo o meu mistério de ser assim mulher eu digo.contar-te-ei a história mais linda
a única que verdadeiramente nasceu para ser contada. é que essa é a sua natureza.



o irmão da minha mãe que nem sei se a tratava por mariazinha e que morreu muito jovem
dizem que se deixou morrer por amor
eu acredito porque tinha os olhos mais água que alguma vez vi. isto claro eu penso ao ver os retratos em que
encostado a uma fonte
a sombra de um chapéu de feltro lhe emodura o rosto. os olhos porém abrem-se em segredos tão secretos que só alguém sangue do seu sangue poderá desvendar.
eu sei. o amor pode ser paixão e parecer um bicho a roer os ossos e a carne de um homem e nem sobrar uma palavra para dizer. ser um silêncio tão olhos que nem sobra corpo vida razão. esse irmão da minha mãe é o meu tio. e juro que o amei como uma mulher ama um homem e lhe quer resgatar o corpo. tinha treze anos e todas as segundas feiras de manhã
me deixava cair no céu daqueles olhos e morria um bocadinho. por isso sabes
até entendo que ontem
ao fim do dia
tu aprendesses que o teu corpo existe. as segundas feiras à tarde só existem para aprendermos a viver o resto dos dias.








histórias de um futuro que hoje vive, sofregamente,
abruptamente, ter medo de morrer num sítio estranho, onde
só existem estrelas e negro, guardar sempre o último fôlego para
depois, olhos abertos. no dia seguinte começar a escrever um novo futuro.






*antónio lobo antunes*


blimunda dixit