Olho para cima, para a nuvem branca com forma de urso polar que cruza o céu azul sobre mim, enquanto os pardais saltitam pela calçada a chilrear. Os meus passos demoram-se na mais tripeira das ruas, o olhar perdido no reencontro das construções seiscentistas e nas varandas onde noutras eras suspirou o amor na Rua das Flores. Mais adiante, três mulheres idosas estão à porta de uma casa e conversam entre risos, sob o aroma das flores que se eleva no ar e volta a escorregar silenciosamente dos telhados para a rua.
Um homem vem a descer a rua na minha direcção e detém-se regularmente, tomando notas num bloco imundo e semi-desfeito, olhando à esquerda e à direita, como se estivesse indeciso. As cãs desgrenhadas ofuscam ao sol como uma clara de ovo, os óculos têm a armação remendada e a roupa que veste está puída e sem memória de côr. Olha para mim um instante, quase me cumprimenta mas depois coça a cabeça e volta a escrevinhar algo antes de recomeçar a andar. Aquele olhar ausente dispensa qualquer conversa, a razão vive quase sempre mais nos nossos olhos do que nas nossas palavras. Observo-o a distanciar-se, uma silhueta alienada que segue no lado do sol do passeio, pontualmente investindo até ao meio da rua para anotar algo, e com isto espavorindo sempre os pequenos e assustadiços pardais.
As três mulheres que estavam à conversa aproximam-se de mim lentamente, observam o pobre homem e meneiam a cabeça, uma delas tenta exprimir o que sente com a sua mão pousada sobre a boca. Contam-me à vez a história do homem que perdeu a razão quando a noiva o recusou nos dias de juventude, negando para todo o sempre o enlace sonhado. De longe a longe o homem volta a percorrer a rua, dizem, de bloco em punho, a tentar encontrar em alguma poeirenta arrecadação da sua memória o número da casa onde a sua noiva vivera. Anota todos os números dos prédios e das moradias, registando qualquer dado que possa reconhecer. Dezenas, centenas de números, escritos numa caligrafia senil, certamente sobrepostos e repetidos até à exaustão, uma busca inútil da inexistente chave que abrisse as portas do Tempo e da faculdade dos princípios. Os anos de ausência, o regresso da guerra colonial, a recusa, o horror da solitária vivência em hospitais psiquiátricos, a loucura e a pobreza. A vida torna-se morte em vida, o que se é resume-se a um rabisco sem sentido num papel amarelado e sebento.
Observo uma poça de água no passeio a reflectir todo o fulgor do sol enquanto ouço as últimas palavras das mulheres. Depois despeço-me e quando vejo os sorrisos engelhados daquele trio de pequenas anciãs, sorrio em resposta pois as pessoas do Porto são afinal o melhor que esta cidade tem. Quando começo a andar lembro-me de alguém me ter contado que era na Rua das Flores que outrora havia lojas de panos que vendiam às raparigas casadoiras os enxovais que constituíam o seu dote e sorrio outra vez, mas desta vez sem nenhuma alegria. As sardinheiras debruçam-se nas varandas como se ouvissem as histórias da rua e há pétalas vermelhas no chão. Talvez por cada pétala caída nasça uma nova esperança algures, talvez haja sonhos que também assomam às varandas das casas antigas da Rua das Flores, imaginando onde vão ressuscitar na próxima alba.
Um homem vem a descer a rua na minha direcção e detém-se regularmente, tomando notas num bloco imundo e semi-desfeito, olhando à esquerda e à direita, como se estivesse indeciso. As cãs desgrenhadas ofuscam ao sol como uma clara de ovo, os óculos têm a armação remendada e a roupa que veste está puída e sem memória de côr. Olha para mim um instante, quase me cumprimenta mas depois coça a cabeça e volta a escrevinhar algo antes de recomeçar a andar. Aquele olhar ausente dispensa qualquer conversa, a razão vive quase sempre mais nos nossos olhos do que nas nossas palavras. Observo-o a distanciar-se, uma silhueta alienada que segue no lado do sol do passeio, pontualmente investindo até ao meio da rua para anotar algo, e com isto espavorindo sempre os pequenos e assustadiços pardais.
As três mulheres que estavam à conversa aproximam-se de mim lentamente, observam o pobre homem e meneiam a cabeça, uma delas tenta exprimir o que sente com a sua mão pousada sobre a boca. Contam-me à vez a história do homem que perdeu a razão quando a noiva o recusou nos dias de juventude, negando para todo o sempre o enlace sonhado. De longe a longe o homem volta a percorrer a rua, dizem, de bloco em punho, a tentar encontrar em alguma poeirenta arrecadação da sua memória o número da casa onde a sua noiva vivera. Anota todos os números dos prédios e das moradias, registando qualquer dado que possa reconhecer. Dezenas, centenas de números, escritos numa caligrafia senil, certamente sobrepostos e repetidos até à exaustão, uma busca inútil da inexistente chave que abrisse as portas do Tempo e da faculdade dos princípios. Os anos de ausência, o regresso da guerra colonial, a recusa, o horror da solitária vivência em hospitais psiquiátricos, a loucura e a pobreza. A vida torna-se morte em vida, o que se é resume-se a um rabisco sem sentido num papel amarelado e sebento.
Observo uma poça de água no passeio a reflectir todo o fulgor do sol enquanto ouço as últimas palavras das mulheres. Depois despeço-me e quando vejo os sorrisos engelhados daquele trio de pequenas anciãs, sorrio em resposta pois as pessoas do Porto são afinal o melhor que esta cidade tem. Quando começo a andar lembro-me de alguém me ter contado que era na Rua das Flores que outrora havia lojas de panos que vendiam às raparigas casadoiras os enxovais que constituíam o seu dote e sorrio outra vez, mas desta vez sem nenhuma alegria. As sardinheiras debruçam-se nas varandas como se ouvissem as histórias da rua e há pétalas vermelhas no chão. Talvez por cada pétala caída nasça uma nova esperança algures, talvez haja sonhos que também assomam às varandas das casas antigas da Rua das Flores, imaginando onde vão ressuscitar na próxima alba.
katraponga dixit
1 comentário:
Ena, que honra! ;)
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