14 abril 2006

24. Noutra Jazida

Existe uma forma mais interessante para dizer isso. Existe, mas não se usa. Existe uma canção para acompanhar essa batida, contudo, e também, não se cria. Existe uma infinidade de coisas para reinventar um monte de coisas mas que por algum motivo preferimos os vínculos com as formas antigas. E nisso somos iguais aos outros tantos que se parecem a nós mesmos. Suor, temor, passividade e obediência. Somos idênticos. De acuados como coelhos à preservação contra as limitações, somos idênticos. Em respostas que já sabemos e perguntas prudentes, definitivamente fazemos parte da mesma caterva de indigentes. Nas previsões nefastas, sem valor agregado algum, escolhemos as mesmas quando o que nos toca é extinção, esvaecimento ou avaria. Presos ao mesmo motor, ligamos as hélices de um que-se-foda enquanto afundamos em remordimentos. Dores inúteis, só pra deixarmos a coisa rasgar por dentro, devagar, como toda sentença avara que só nós sabemos reservar a nós mesmos.

Pelas consoantes dessas tintas chegamos a um quadro no mínimo esquisito, o dos poemas que só navegam e prosas morosas sucessivas de sombras sem nenhuma eficiência, senão aquela para ficarmos sangrando na merda das feridas. Se estancar fosse algum método avançado que se aprende sem se descascar a própria pele, talvez valesse a pena lê-los, flanar em movimentos que não são nossos, mas cuja rotação por alguma razão desconfiamos pertencer. Mantemos com ela uma junção fecunda que se constrói enquanto é o outro que vai caindo, uma vez que para existir na gente esse outro precisa sentir muito parecido. O mal que ele devassa tem o mesmo cheiro, a mesma textura daquilo que nos consome vivos, lúcidos e mortais. Absolutamente mortais, sem honras nem créditos que uma brochura qualquer possa ter. Por isso escrever só vale para quem acha que ordena a vida em capítulos a fim de observar os círculos do seu tempo, entrando e saindo dos seus infernos, mostrando por onde se entra e como se sai. O resto é comentário disperso, permanente e pobre, despojado da realidade de como nos extinguimos na nobreza de um verso. Ou de uma frase, bem humana, quando nos mandam para o inferno.

Esse é o limite que se impõe a quem sente e escreve. Elisa nos meus braços é quente, Elisa no teclado é uma sensação que se descreve, mas poucos sentirão o calor da Elisa como eu quando a tive por perto. E se hoje ela anda sumida, a quem importa esse fato senão àqueles que um dia tiveram uma Elisa quente nos seus braços? Que para lembrarem-se dela irão me ler só para não deixarem envelhecer os braços, a quentura, que não é da minha Elisa, mas a deles, para quem eu não criei um roteiro que mostrasse como eu estou caindo sem a minha Elisa quente e longe dos meus braços. Não há orgulho mais exilável do que ter sentido algo, escrito sobre esse algo, mas que serve apenas para deixar entrecerrado o desamparo. Melhor foi ter sentido, sem que ninguém soubesse, pois quem me remete para esse fogo sou eu, sem necessitar de escrita, páginas de justificativas de como se perde quentura, braços, Elisa e perto.

Por isso que das perdas e suas baldeações trato-as como lendas. Dizem que foi, afirmam ter visto, era uma vez uma fome e a saciaram para sempre, pois não me satisfaço com restituições de esperança, sobrevidas de farturas, fugas, transportes e pretextos. De séculos venho amando o real, obstinado com o sustento real, na mais rasa motivação real, sem prolegômenos frugais como antepasto ao massacre de realidades que engulo depois. Quando eu afundo, afundo porque quero e fico lá não por conta de um poema que eu leio como peixe num aquário ou prosa erudita num acadêmico enferrujado. Fico no fundo porque a realidade queimou, bateu aonde não deveria, e por instinto ou passageira confusão, fico lá, por algum tempo. E ninguém vem me resgatar porque ninguém me levou pra lá, nem Elisa, nem braços, mas uma quentura desbocada gritando Você se fodeu, Você se fodeu. Por isso é que eu digo: alguns nascem para narrar o passeio, outros para morrer no passeio. E outros, os reais, para desfrutar do passeio. No gozo. Sem os círculos e os capítulos, subindo e descendo nesse andaime que só nós conhecemos, sua arquitetura, seus extremos, do chão ao mais dourado dos mundos. Real e deliciosamente por dentro.


Ilidio Soares dixit

1 comentário:

Anónimo disse...

esse texto é incrível. aliás, como Ilídio é sempre.

kiss-kiss.