30 janeiro 2006

11. a ponte



Parávamos a meio da Ponte 25 de Abril. Se fôssemos rápidos, a coisa resolvia-se sem muitas chatices. Fazíamos o que tínhamos a fazer, metíamo-nos no carro, dávamos a volta a Alcântara e regressávamos a casa.

Por vezes, quando eram muitos ou quando tu te comovias particularmente, os minutos alongavam-se terminávamos por ter a companhia do carro da GNR. Perdi a conta ao número de vezes em que tive de explicar ao graduado de serviço ao que vínhamos. Cansava-me de explicar que embora fosses calada e eu te acompanhasse em silêncio, não éramos potenciais suicidas nem nos passava pela cabeça atirarmo-nos da ponte abaixo. Não éramos desses. Com o passar do tempo, acabámos por ficar conhecidos do pessoal do Posto e a vida tornou-se mais fácil.

O ritual era sempre o mesmo. Saías de manhã, bem cedinho. Apanhavas o barco das 05.15 para o Cais do Sodré e fazias a tua peregrinação de sempre pela Ribeira.

As bancas do peixe eram a tua perdição. Passavas horas naquilo. Pé após pé, fazias quilómetros dentro do Mercado. Alinhados nas pedras, cobertos de gelo, os peixes fitavam-te, olhos nos olhos. Descobrias entre todos eles os mais infelizes, os mais desalinhados, os mais desconsolados. E, invariavelmente, comprava-los todos.

Carregada com os peixes mais tristes do dia, retornavas a casa. Na manhã que te sobrava e durante toda a tarde, celebravas as exéquias devidas: vestias-te de negro, oravas, meditavas e choravas. Depois, quando o turno da Setenave terminava e eu regressava a casa, comias em silêncio a malga da sopa e o pão escuro e duro que nela demolhavas. Depois esperávamos até que a tabela das marés que tinhas sempre contigo te indicasse a hora certa para a viagem - confesso-te que, de todos os rituais que tu tinhas, essa espera era o momento que mais me custava a passar. Dizias que não querias que eles fossem dar a Vila Franca ou que apodrecessem no Mouchão de Alhandra. Que com a maré vazante eles descansariam em paz eterna, no oceano profundo. Que do mar vieram e ao mar retornariam, algas às algas, areia à areia. E eu acreditava.

De mãos nos bolsos, imóvel sobre o tabuleiro, indiferente aos carros que travavam e apitavam, ficava a ver o teu choro triste quando te despedias deles e os lançavas um a um da ponte abaixo. Pescadas, corvinas, cações, salmonetes, toda a espécie de peixe de todo o mar de Portugal era objecto da tua compaixão diária, do teu luto desenfreado.

Sabes bem que nunca te quis mal, amor. Sabes bem que me era muito difícil poder pagar todos os peixes que compravas, que a vida foi sempre madrasta para nós, que tudo se tornou cada vez mais difícil depois da fábrica ter fechado as portas.

Quero que saibas que penso muito, muito em ti. E que choro muito, mas mesmo muito, sempre que aqui na prisão nos servem pescada cozida ou carapaus com molho à espanhola. Nesses dias, nada como. Passo fome. E grito. Grito como tu gritaste quando naquele dia te empurrei em direcção à paz eterna no mar profundo.


Alexandre Monteiro dixit

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