19 janeiro 2006

2. Dagmar Não Soube Esperar


Amor chagado, desse que tritura a vontade de uma vida inteira. Peito em dissolvência, que adentra o cerne das gotas de suor na nuca, real e instantâneamente. Poderoso. Capaz de deixar a boca afogando-se na carne abundante dias inteiros. Quando se vai, leva a eternidade e deixa uma corrosão.

Esta era a matéria sedutora que ela queria trancar numa vasta e pertencida agonia, mas a matéria devolvia-lhe sempre o mesmo rosto porque vinha de uma luz que não lhe pertencia. Era coisa primitiva. Dessas que andam na rua, nos mercados, fugidía e não se avizinha seu nascimento.

Dos poucos amores que seu quarto habitou nenhum produziu fonemas, uivos e unhadas nas costas semelhante àquele que se meteu no negrume de sua alma sem fundo. Deitou-se com ele várias vezes. Mas se chegarem gentes com suas línguas escancaradas, dirá que sobre suas fartas ancas apenas seu marido repartiu o instante convulsivo. Um homem que para ela havia se transformado nos últimos anos em apenas um passo no grande passeio que pretendia para a vida.
Olhando o futuro - e a nitidez da mirada de Dagmar não se perde na penumbra nem no nome dessa passagem - ela dobra-se num pulo e expõe as nádegas para ser pertencida de maneira espessa e sem palavras. Do amante ela só aguarda estocadas profundas e bocas tortuosas, pele e ruínas. Só através desse ponteiro de ébano esguio é que ela consegue emergir da condição terrosa de mulher esculpida com um rosto vazio. Só assim ela volta ser a menina que viveu em agrandados vestíbulos, mucamas, prenha de sonhos e relâmpagos nos olhos iluminados.

Dagmar nunca se aquietou. Na agonia de ser uma fazedora de caminhos e genealogias - desde de pequena gostava de se perder nos intentos porque essa era a única forma para atravessar os dias que só lhe armavam ciladas - faria um barco que moldasse o encantamento dos seus mitos e sustentasse o fogo para uma vida de partidas. Seria extrema, e condenaria a saudade a um resto insosso de decifrações de ruas, vilas, odores de frutas e lençóis quarados. No início da adolescência colou-se à compaixão, mas não àquelas feitas nas igrejas do seu Rio de Janeiro de 1909. Foi ativa, cheia de atalhos, porque queria chegar rápido às soluções e tomar de assalto a infelicidade dos que sofriam. Dagmar entrelaçava-se com os amigos, nas suas caídas e nas raízes das suas angústias. Raro para uma moça da sua época.

Mas o mundo não estava mais na infância. E Dagmar percebeu isso quando seus pais lhe apresentaram um jovem médico vindo do interior de São Paulo. Culto, equilibrado, bem aventurado, desses cuja a esperança parece desprender-se do pouco que ainda se é, e vai para além da vontade do que se delimitou querer. Desde o primeiro instante ele ficou refém do fogo e da lua de Dagmar. Mas como a paixão era a sós, à espera de uma fome que ela não entrevia o contorno, a união se resumiu à vontade dele e no deixar-se amar dela.

Envolta na poeira daquele começo, repensando as coisas que atravessam as idades e não nos deixam mais voltar ao barro inicial, Dagmar murmurou que aceitava o casamento. Se na infância o mito resvalara o mundo, agora o vento da fala real de um homem avançava sobre seu quadril, lambia-lhe os inumeráveis segredos, mas um grito de voracidade vindo da alma aquele homem jamais ouviu sair de sua boca. De entender o porque daquela decisão não lhe havia sido dada a hora. Mas foi esta a condição que Dagmar escolheu aos dezessete anos para não se tranformar em mulher.

Deixando para o futuro a resposta de seu ato, ela não percebeu que o medo a impediu de ver que desde o começo já existia algo de remendado naquilo tudo. De perversa e incontrolável semelhança. Porque entre os atributos diletos de sua família, acatar o possível era mais digno do que tentar ir-se mais longe na diversidade. Portanto as viagens, o viço, os pomares e o transitar por outras vidas estavam condenados a ficar guardados nas rugas da sua testa.

O desencantamento começou a surgir nos primeiros meses de casamento. As doenças em seguida. Aos dezenove anos dores agudas na coluna transformaram sua rotina em idas e vindas do farmacêutico para aplicações de morfina. Único alívio, moldado ao seu tempo e circunstâncias. Como ela mesma chamou esse período, esta foi a época das paixões. Enterrando-se na mais alta constelação do vício e resistindo a correnteza de um espaço agastado, Dagmar foi criando uma lesão na coxa que não desaparecia da pele porque não era mais a pele que comandava-lhe a vontade. De alguma maneira ela pedia que a dor se refizesse para depois ir ajustando-a às ilusórias sobrevidas que a droga provia.

No sofrimento ou na vigília, mas com os olhos pregados no mulato que lhe alisava a perna e enfiava dentro do seu corpóreo o solvente da dor, Dagmar percebeu que ele poderia ser o homem que viera das terras que nunca visitara, trazendo-lhe uma medida que até então não experimentara. E foi.

Seu nome não importava. Ele simplesmente cintilava, tinha cheiro de capim e reacendia sua existência com a execução das picadas que penetravam no oco permanente que os anos de casamento construíram. No início, como quem só quer ver e escutar o coração da semente, Dagmar guardou para si o axioma do frêmito e seus princípios.

Não dizia nada, sequer esboçava nos olhos o espanto de haver identificado a distância que a separava do seu jovem esposo. Uma extensa fome de afagos, tão estilhaçada, tão rastejante que somente a droga foi capaz de desvia-la do caminho de desperdício. Como esposa, trancou a cancela da estrada, mas, no consumo feroz de querer se transformar definitivamente em mulher, abriu-se adequadamente numa tarde inquietante de insetos e odores.

Sem vestígios nem soluços agarrou a mão do seu curador, e com um olhar baço que nada condena nem justifica, puxou-o para si na esperança de tingir com beijos a tarde flutuante. Se fosse noite, o úmido cio adormecido se rebelaria com vozes que o coração não consegue separar. Finalmente o invólucro se rompera. Porém, por descrer da consciente espera, lançou-se vagarosamente no sopro de um homem que a terra não desgastou. E esse homem foi cavando o casulo do seu silêncio com pouca garra e muito encantamento. Palavras não proferiu. Os sons da sua boca vinham de um sumo apropriado aos adornos. Recheado de risos e uns, estendeu-se na nudez devastada pela resistente espera, perseguiu a retração das suas buscas e farejou o charco e os dejetos de sua antiga vida inteira.

Dagmar amou esse homem por quarenta tardes. Se ele apenas tivesse tocado seu coração, se tivesse apenas posto a língua nas suas águas vacilantes como um bêbado desnorteado à beira de um mar de espumas, Dagmar não superaria o cansaço de haver se tornado mulher. Mas ele foi além. Foi não querendo ser raíz das suas escuridões e dando gargalhadas deliciosas que esse homem, sem nome e sem razão, transformou a astrologia do seu destino em altura sensível para os dias imóveis.
Não pretendendo ser salva, nem recusando adivinhar-se na pura distração, Dagmar despejou sobre ele as coisas que não se submetem as coisas dos homens e ficou junto dele durante os dias daquela razão.

Mas como a paixão se move e está presa à metáforas, seus viventes se descompassam tentando penetrar nas camadas que encontram naqueles vêns, e cujo conhecimento se tece com risco e prenúncios. No traçado múltiplo que não cabe na margem das coisas que não são contadas. E, por isso, de novo as metáforas. Tem sido este o desígnio dos que se descosem no mergulho que iniciam dentro de outro alguém e tomam para si os desvãos da sua dependência. Para muitos essa coisa que ultrapassa o impulso de existir preserva entre as coxas um lixo ou a parecência do eterno. Para Dagmar era um gemido surdo.

Considerar a esperança ¾ que ampara a inteligência e suaviza a ansiedade ¾ como único recurso para evitar a destruição que a ausência de um beijo definitivo e que se enterrou no coração provoca, é acreditar cada vez menos na carne humana. É desaprender o sentido dos pelos, das perplexidades que nos causam cada vez que vamos até os poros, nitidamente nas intersecções, nas falhas, cuja umidade supera a literatura de qualquer coisa gordurosa ou alegre de vida. A esperança, dentro de uma garganta apaixonada, não prende nada. É uma barca ardendo sobre lágrimas fúteis e que tudo afasta.

Foi pensando assim que Dagmar escreveria mais tarde: todos os momentos passados com este homem, na ilusão inevitável de que tudo viria dele, e onde meu prazer era não ter mais que dormir, mesmo nos dias sossegados das minhas névoas, não ter que conceder nada além do que um gesto exato, no território livre que escolhi para ficar ao seu lado, perder as medidas de quem sou e também aos olhos de quem me vê, ser a fuga ou o movimento sem rumo de uma lua sem terra, de certa maneira ser sua amante mas temendo ser sua filha, pela magia ou pelo remorso. Aproximei-me bem rente desta queimada e apreendi com a carne jubilosa a transgressão. Defitivamente esse homem me descobriu.

Empoçada de tempo, Dagmar atravessou aqueles dias sem nenhum apresto nem ordenação. Chegou à inquirições, até a náusea, aos vínculos expostos, que na execução de um casamento esfriado são respondidas com um sim ou um não. Numa linguagem que despreza a própria culpa, dessas que se constroem na passividade doméstica, ela foi juntando num espaço também doméstico as tardes flavescentes, os dedos molhados, as geometrias, frestas e ardências. Nada mais era preciso contra a esperança. Ela estava viva e além da concepção que separa o corpo da alma. Numa largueza de razões, amena, e sem nada para lhe truncar o insaciável vício de viver, Dagmar amadureceu.

Em seguida foi comer sua descendência, largando fora as profecias preconceituosas que abalavam sua épcoa. Aprendeu a falar com o mundo, deixando-lhe palavras e levando suas vertigens. Imersa em tanta alegria, tirou do seu interior idéias de outros temas, poesia, a contenção dos dois anos e foi-se embora.

Quando seu homem partiu, após as quarenta tardes, Dagmar restaurou a coragem que não descolava da sua danação. Sem se retrair nem se esguiar das sombras que se enfrenta no abandono, ela emergiu dos seus guardados e jamais regressou àquela casa. O desespero, ela deixou para o residente de semblante satisfeito e acomodado. Dela não se ouviu mais falar. Seus pais engendraram uma história de loucura e suicídio, enterrando-a no sótão da memória familiar sem explicação e sem jamais terem-lhe suspendido a pena.

Nessa relação de bens em partilha a prioridade é para tudo que possua vida. E foram essas coisas que Dagmar deixou para trás. Amor, ódio e separação. Nessa hora as coisas de um homem são mantidas em desempenhos, na largueza de uma corrosão que requer outro tipo de sofrimento. Necessita uma linguagem pessoal, raramente evidente na esfera dos abandonados. É o tempo das precariedades, onde matamos ou morremos sem nenhum argumento; se preservamos ou não os filhos, se a lentidão do drama que vai moendo a noite inteira é provisória ou se multiplica. Essas intimidades se intercomunicam há milênios, e não poderia ser diferente no caso do abandonado. Ele sofreu pelos olhos, na inocência ou incapacidade de não ter permeado aquele sonho, pois o movimento do seu amor não foi resistente aos círculos de Dagmar. Seu descuido levou-a embora, perdeu luz, o ritmo e as decifrações que tanto perseguiu.

Chegou a acreditar numa emboscada de baixos sentimentos, mas largou essa crença por outras voracidades. Quis voar, quis tocar a demência, temeu seus limites e voltou como ave retardatária ao poente daquilo tudo. Dividiu o amor em partes, morreu de saudades, sacudiu a loucura e deitou-se no tempo que tritura os dias de antigos encantamentos.

Quinze anos após a partida de Dagmar, aos trinta e sete anos, ele escreveu a um amigo de São Paulo: à Deus não ouso nada. Desgastei-me no trabalho que sangra ou cava a terra. E meu único infortúnio foi não ter alcançado Dagmar. Despejado da sua aventura, obriguei-me aos meus lugares. Para manter as coisas de homem e o filho que ela me deixou considerei-me vencido porque não lhe compreendi o rosto inteiro, nem sequer o cheiro do seu vulto. Ela foi além do meu amor abstraído. Depois do espanto de ser deixado à margem de uma fartura que era só minha, casei-me novamente numa rotação contrária ao conforto inicial. Devastei-me entre paredes, pousei as esperanças na fome extrema de outra mulher que, orgulhosa por revolver-lhe o umbigo, cuida de mim até hoje. Tivemos dois filhos e toda a condição para entrarmos na morte com plenitude e vislumbre. O corpo que ela me regalou ensinou-me a entender Dagmar, a contá-la e dividir meu exílio. É uma pena que só agora tenha conseguido me libertar da alma. Pena que Dagmar não me aguardou.




Ilidio Soares dixit

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