25 janeiro 2006

9. dia 31 de outubro, 2041 / dia 24 de junho, 2028



(dia 31 de outubro, 2041)

I

Não fosse o barulho da cidade em movimento, neste fim de tarde, suficientemente agressivo, o silêncio dos pássaros tornar-se-ia desesperadamente ensurdecedor. Olho-os, percorro o seu trajecto agitado, e não os ouço. E eles voam em torno das árvores, tantos ... e eu não os ouço ... seria hora de acordar aflito, se ...
... mas não sonho.
Esta angústia remonta a uma antiga intuição,

... com a obra morre a ideia ... ... com a morte vê-se o silêncio ...
“... são almas que choram, ...”



As pessoas que me evitam, apressadamente, afastam-me o pensamento dos pássaros e olho em redor. Encaminho-me para aquela igreja - na falta de uma gruta, uma catedral...

À porta, cumprimento o mendigo (há sempre um mendigo à porta das igrejas). Apetece-me sentar a seu lado e pedir-lhe um pouco de pão, pretexto que a seus olhos seria válido para legitimar, pela fome do corpo, a nossa irmandade na solidão do espírito.

Sento-me e não lhe peço nada ... mas anuncio-lhe com tristeza: "os pássaros morreram".
Ele já sabia, levanta-se e afasta-se apenas para não ter de enfrentar a minha inocência.
Não entro. Deixo-me ficar sentado, indiferente ao que as pessoas vão pensando enquanto por ali passam. Os nossos olhos cruzam-se por vezes, e apesar de a minha aparência não provocar o habitual desviar do olhar e da misericórdia, o insólito da minha postura inexpressiva traz à superfície aquele tipo de sentimentos que, como a compaixão, nunca vêm sós. E é numa mistura emocional que alguns aceleram o passo, enquanto outros, por associações tão pessoais que não se enumeram, não hesitam em contornar-me e, sem deixar de com o olhar mo agradecer, entram na igreja.



3. imponderável charme de morte

(deste lado)

I

Ao fundo, o negro das roupas que vestem o silêncio confunde-se com as paredes nuas e sujas. Mesmo a luz que consegue tenebrosamente entrar, apenas contribui para o contraste dos cinzentos (quase amarelecidos, é certo, em algumas horas do dia).
A regularidade a que os bancos corridos se distanciam faz-nos recordar as ondas, as nuvens, os socalcos ou os telhados dessa cidade que já não há – cidade invisível, dos nossos sonhos de ontem...
De cada lado, as figuras perguntam-nos silenciosamente as horas, ou melhor, questionam-nos sobre o tempo (pois para a eternidade da pedra ou da madeira o tempo é o único assunto que realmente lhes importa). Os seus olhos levam-nos sempre a tentar localizar historicamente a sua origem, como se o sofrimento que lhes deu “vida” pudesse ter outra explicação que não os vícios da nossa própria falta de fé, a maldade sobre-humana de alguns de nós ou a miséria escondida nos intestinos da alma de todos. Mas quando paramos muito tempo diante de cada uma destas santas representações, a infantilidade do espírito ultrapassa a mera contemplação e quase nos deixa voar pelo imaginário, que está sempre iluminado pela presença ingénua da esperança.
Sob os nossos pés, aqui e acolá, emerge um grito abafado até então pelo pó da história. Nessa altura escutamo-lo encantados, como se sempre tivéssemos sabido que da morte se levantam hinos surdos, à nossa procura, e que nem a pedra que se lhes assenta em cima os faz cair na luz do silêncio.
Em cima, o céu deixou-se esculpir na pedra em formas severas – como se Deus se estivesse sempre a espreguiçar, para com os braços eternamente abertos melhor nos guardar e proteger; ou ainda, para de forma piedosamente infeliz nos tocar a todos com carinho e nos fazer acordar do sonho de existir sem Ele.

As roupas que vestem de negro o silêncio movem-se imperceptivelmente para junto do leito macabro, almofadado para conforto dos vivos na assunção de cumprido o atemorizador dever para com os mortos. O jardim que em redor se desenvolve, em formas curiosamente circulares, quase faz esquecer o significado da cor das faixas de seda que o ornamentam.

O morto, como cidade invisível também, repousa de olhos por outrém fechados, e espera...


__________

nota do editor do blog:

este texto foi escrito no dia 6 de março de 2062, data que já foi aludida antes: o Professor morreu na véspera, dia 5. ainda não é possível determinar com rigor a relação entre este texto e o escrito em 2028. não foi possível determinar também, com certeza, se este texto se refere ao facto do dia anterior, ou se teve um carácter completamente ficcional, que apenas por coincidência macabra se inscreve nessa sequência cronológica. Talvez apenas quando se nos tornar clara a relação real ou possível entre o Professor e o narrador deste texto esta questão seja ultrapassada. Temos em mãos o estudo de algumas cartas que esperamos venham a trazer alguma luz sobre a origem destes textos. Também ainda não foi possível escutar o quarteto de cordas de cujas notas de programa é citada a frase com a obra morre a ideia. Esperamos que o interesse de cada um dos fragmentos que vamos partilhando não diminua pela falta de dados biográficos. Os leitores serão elucidados sempre que alguma informação relevante seja revelada.



(dia 24 de junho, 2028)

II

Ainda bem que nenhum vértice representa o fim, mas apenas uma mudança de direcção. Quando nos sentimos próximos do fim, não temos sequer a ilusão de caminhar para lá de vértice algum; ou seja, o horizonte plano e tranquilo da visão do fim acaba por ser mais perturbador que a sensação de viragem de rumo, mesmo para o desconhecido. Quantos ângulos tem a vida? Provavelmente não será a circunferência a forma mais perfeita, mas sim o triângulo (sem quaisquer conotações teológicas, por enquanto – estou só a tentar compreender as vantagens metafísicas de três vértices ...).
Enquanto penso nesta idiota construção geométrica da existência, medida em vértices de esperança assustadora, a escuridão que me envolve murmura ruídos de lado nenhum, barulhos ínfimos que só se ouviriam por um louco ou por mim, tal a minha concentrada imaginação. Cerca-me o vazio, eu sei, mas o vazio não é só silêncio.

(“As cousas que me cercam, silenciosas,
São almas, a chorar, que me procuram”
Teixeira de Pascoaes )



(dia 24 de junho, 2028)

III

Em fase de revisão? De há quanto tempo, no futuro, me observo? Que pena um personagem não poder partilhar com o seu autor um só momento de mútua existência. Sobrepor-se-iam como dois espectros coloridos? Atravessar-se-iam como fantasmas? (de quem? Mais confusão, por agora não, obrigado) ... No entanto, a perspectiva de um encontro não deixa de ser mais angustiante do que a noção da irrealidade da nossa vida. Ser em alguém (mesmo num futuro interior) não será melhor que Ser em si ?
Futuro interior ... o Tempo aqui dentro bem junto ao nariz da alma, meu caro amigo...



(dia 24 de junho, 2028)

IV

Levanto-me e a manhã sabe-me a cinza, a pó. Talvez seja da madeira do chão, do tecto, ou apenas de mim. Tenho frio. Ouço passos; estou sozinho. Ouço passos novamente. Sobre a cadeira a roupa remexe-se desalinhada, como que acordada de um sonho em que vestia um príncipe. Os passos eram dele, e agora que saiu, ajudo a roupa a encontrar-se consigo mesma, vestindo-a no meu corpo.
Olho para a janela fechada e penso vagamente na hipótese de nada existir para além dela... nem sequer o vazio. Aproximo-me da porta e esta limitação espacial irrita-me. Preferia Ser sem Espaço, ou pelo menos sem Forma, o que já seria suficientemente delimitador. Com um sorriso, ironicamente, a porta convida-me a sair ...
Aceito.
No corredor a ausência de plantas surpreende-me.
Regresso e penso ...



(dia 24 de junho, 2028)

V

O Triângulo apresenta contudo a grande desvantagem de não elaborar satisfatoriamente a ideia de não-retorno. Tento ainda imaginar um triângulo em espiral ...


(ver NOTA)


Mas a não-sobreposição no retorno, apesar de presente, não é definida pelo número de vértices, pois o problema é comum a todas as formas fechadas; é a própria ausência de sobreposição mais importante que a Forma. É pena, pois a ideia inicial agradava-me intuitivamente. Lembro-me do meu autor lá adiante (não sei em que direcção) e penso que a nossa sobreposição estaria sempre correlacionada com a sua morte, pois que eu lhe sobreviveria (como qualquer personagem). E neste momento? Poderia matar o meu autor com este pensamento? Sentirá ele na sua imaterial memória a ameaça da futura aniquilação dos sentimentos?




NOTA: no manuscrito que aqui se transcreve, existia um esquisso, algo rasurado (deduzimos que por hesitação teórica ou falta de firmeza no traço), em que o presumível autor deste fragmento tentou ilustrar o esquema mental a que se refere - uma espiral constituída, não por uma forma elíptica ou circular, mas por uma forma triangular. Diz-se agora que "existia" um esquisso, porque à data em que se tentam reunir os elementos que permitam entender de que forma estes fragmentos nos elucidam acerca do seu autor, descobrimos um pedaço deste mesmo texto, com data por confirmar ainda, no qual não parece ter havido lugar a tentativa alguma de ilustração gráfica. Ainda não foi possível determinar sequer se estamos em presença de momentos diversos do mesmo pensamento, ou simples tentativa de reformulação (na hipótese, plausível por agora, de que sejam do mesmo autor). Sobre a representação gráfica, e dada a quase ilegibilidade do traçado definitivo, perdido entre outros riscos aparentemente inúteis, decidimos omiti-la nesta transcrição, reservando essa divulgação para um momento mais avançado do estudo destes manuscritos.


Jorge Pereira dixit

2 comentários:

blimunda disse...

amigos, amigos, amigos. virtuais não virtuais amigos. as almas encontram-se onde calha. mas encontram-se sempre. um beijinho afectuoso para ti que nos juntaste aqui

r.e. disse...

Obrigado, amiga. as minhas palavras sentem-se como alice, expectantes e curiosas por habitarem de repente um mundo admirável. beijinho. J.