18 janeiro 2006

1. hip.ó.te.se.nu(s)@

*(se me dessem corda girava)*





porque não hão-de as histórias ser contadas se essa é realmente a sua natureza? estamos sentados à beira de um qualquer rio, num final de dia húmido. a proximidade da água dá-te aqueles tons que só existem assim. quando a água está tão em nós que quase nos desagua nos olhos em lodos profundos. nos teus emergem segredos que não querias que soubesse. é cedo, eu sei, penso. é tarde, dizes. escondes essa tua urgência de homem por detrás das lentes e espelhada passo a ver-me apenas a mim. não deves contar das coisas pelos nomes, continuas, é perigoso contar das coisas assim.
invocar, evocar, convocar: penso. como se a boca fosse um enorme buraco de fechadura. e eu espreitasse. espreito. as portas que de portas saiem, entram noutras dimensões. pertencem à memória.
inventada, dirás mais tarde,
com a tua incrível alegria de viver constróis mundos dentro de mundos. e a verdade? perguntarás também, ora, a verdade,
que coisa mais chata a verdade...será que queres ouvir falar da verdade? é que costumas morrer à segunda feira de manhã e acho mesmo que não é uma verdade que te ressuscita.

por exemplo: é verdade que também eu como o lobo antunes hei-de amar uma pedra e que essa verdade é uma metáfora insidiosa tão feia tão feia que prefiro dizer também eu hei-de amar uma pedra e pensar que o granito seria uma pedra amável.

a minha bisavó belisanda era uma mulher de fibra. dizem. porque nunca conheci ninguém que a tivesse realmente conhecido invento-lhe uma história dentro da minha própria história.
que é como tu dizes uma prodigiosa acrobacia de memória
e oplá, eis que em equilíbrio me aparece uma mulher de fibra transmontana, como só as graníticas mulheres transmontanas podem ser. o que dela me chegou às mãos são os lençóis de linho. dizem que fiados tecidos e bordados por ela. eu acredito e muitas vezes tiro-os da arca perfumada de alfazema que também sei ser o cheiro que ela escolhia para os perfumar e deito-me com eles na cama.
nessas noites a verdade da minha bisavó belisanda vem ao meu corpo. é sempre verão. cheira a esteva quente. e há águas tão mansas como rios e beira rios onde
eu e tu nos sentamos
e costumamos falar. por exemplo
tu dizes assim
gosto tanto de ti e acredito.
eu fico parada a tentar encontrar-me um nome que te explique o que realmente sou e pode ser amável. uma transmontana na transumância dos dias
cheiro a esteva e a mulher a quem os pés servem de asas. não há mistério maior que esse que uma mulher reserva para um homem. e isto eu aprendi enquanto te ouvi dizer
acredito
que não há mistério maior que uma mulher quando ama um homem.
depois seguras a minha mão e sobes pelos meus dedos como se quisesses sustentar o teu corpo todo no meu. sabes,
eu também por cá ando à procura de sustento para o meu. mas isto é segredo.
não contes a ninguém.

há muitos homens que dizem palavras capazes de agarrar dedos mãos olhos corpo todo. um diz escrevo para um pé nu baloiçando fora de um lençol. parece ter a vida toda assolada por essa nudez. é que até uma nudez pode ser escandalosa
dizes tu
tentando assim justificar porque não me devo desnudar a alma
deixando-a baloiçar
fora do lençol da minha bisavó belisanda. mas é
linho fiado tecido e bordado por ela. entendes,
casa. é casa. e nada de mal pode acontecer-nos quando estamos em casa
pois não?

eu escrevo para esses lençóis de linho. com iniciais bordadas que nunca poderiam ser as minhas. mas agora o bê é de blimunda. e de belisanda. nomes tão improváveis como as mulheres podem ser quando amam um homem e
é ele quem as nomeia.

o meu bisavô era joão baptista e dizem que nasceu com esse poder que fazia com que as mulheres desejassem o que o seu corpo todo de homem santificado pelo amor oferecia. a todas concedia um nome e a todas acreditava ter amado. morreu na cama de uma criada enquanto a montava gritando lucrécia, lucrécia. a bisavó belisanda entristeceu com tanto nome. e parece que durante muitos anos eliminou do seu vocabulário as palavras começadas por ele. por isso a avó, a minha avó, de milagre de lourdes passou a mariazinha.

a minha mãe herdou o mariazinha. para o irmão e para o meu pai parece nunca ter crescido. foi sempre mariazinha.
o que é estranho é eu não me lembrar de conhecer a minha mãe sem ser já crescida. vejo-a nos retratos a preto e branco. olhos enormes, um laçarote branco a agarrar duas tranças e a minha prima bébé nos braços e digo, esta é a minha mãe. mas na verdade não acredito. porque a mãe que conheço não é mariazinha. a não ser claro para o meu pai. e para o irmão. mas o irmão morreu. sobrou-lhe essa infância prolongada só para o meu pai. sorte é a minha mãe não chamar filho ao meu pai. então seria muito mais difícil eu pensar que tenho uma mãe que se chama mariazinha.

porque há mulheres que dizem filho e querem dizer amante. são assim como umas enormes aves chocadeiras que por debaixo das saias constróiem ninhos onde arrumam ovinhos para omoletes com cebola e salsa e filhos e maridos que são tão frágeis como homens. tão frágeis como os homens quando amam. depois os filhos e os homens crescem e nem sabem como hão-de olhar as mulheres por debaixo das saias. ou então são assim como o bisavô joão baptista e amam as mulheres todas como se as quisessem nomear com nomes tão improváveis como lucrécia. e montar. para se recordarem de existir à luz do sol todos os dias. excepto à segunda feira de manhã quando escolhem morrer por um bocadinho. é que viver sempre também cansa um homem.

são estranhos os homens. assim tão estranhos como as mulheres. por exemplo
quando dizem coisas assim

que tempo faz neste verbo
quando os olhos sem as palavras
guardam em silêncio
o inverno de junho?

podemos nós cair no céu
assim, manchados de tinta permanente
na camisa e nos dentes?


e que te fazem pensar em enormes escritórios na penumbra e ele escrevendo-se por entre a angústia de uma manhã de segunda feira em que se deixa morrer por um bocadinho. só para descansar a vida. em redor levanta-se esse céu encadernado em que cai quando se sente apenas uma palavra. de permanente só a cor que a irisa. e nos dentes as carnes macias de uma mulher. porque a única verdade que pode ressussitar-te é o amor de uma mulher. e esse adormece muitas vezes embalado por águas mansas, tão mansas que mais são os rios em que a memória se dá. eu sei porque vi no espelho dos teus olhos as minhas águas mansas adormecerem-te. por dentro dos teus olhos um nome chegou a aflorar. mas não o disseste. assim
as segundas feiras são sempre dias em que as manhãs te matam. é só um bocadinho. mas chega para te deixar um buraco em forma de corpo.


quando a minha bisavó belisanda amou o meu bisavô joão baptista deve ter sido verão. e as carnes dela deviam ter essa cor de trás os montes quando o sol dá nos penedios e se espalha pela esteva. sobra sempre um cheiro muito a quente e a campo livre e a mulheres de saias amplas roçando pela terra. imagino que como eu gostasse de andar descalça e sem cuecas. e que o joão baptista nunca tivesse cheirado uma mulher tão bonita. a avó belisanda era como os bichos quando esgravatam no chão para fazer o ninho. toda cheia de terra e de céu desejou para ela aquele homem de olhos azuis e cabelos de vento. parecia ter uma liberdade dentro de si que lhe dava uma qualidade de ave. ao voar dentro dela o seu sémen renomeava-a a cada vez que se amavam. e quando ele saía de dentro dela
lenta lentamente
ela dizia
sobra-me sempre este buraco em forma de corpo.








há homens que quando conhecem o mundo por dentro das mulheres
conhecem-se a si mesmo
de uma forma nunca esperada. e então a vida acontece. e a morte é mesmo morte. não é uma qualquer segunda feira.
eu sei de um homem que diz

diz-me de tudo como no ventre
o eterno retorno, a respiração
por dentro, os romances e as personagens
por quem te apaixonas, que te amam.
diz-me, ou então fala, que eu escuto


e por dentro de mim então
com todo o meu mistério de ser assim mulher eu digo.contar-te-ei a história mais linda
a única que verdadeiramente nasceu para ser contada. é que essa é a sua natureza.



o irmão da minha mãe que nem sei se a tratava por mariazinha e que morreu muito jovem
dizem que se deixou morrer por amor
eu acredito porque tinha os olhos mais água que alguma vez vi. isto claro eu penso ao ver os retratos em que
encostado a uma fonte
a sombra de um chapéu de feltro lhe emodura o rosto. os olhos porém abrem-se em segredos tão secretos que só alguém sangue do seu sangue poderá desvendar.
eu sei. o amor pode ser paixão e parecer um bicho a roer os ossos e a carne de um homem e nem sobrar uma palavra para dizer. ser um silêncio tão olhos que nem sobra corpo vida razão. esse irmão da minha mãe é o meu tio. e juro que o amei como uma mulher ama um homem e lhe quer resgatar o corpo. tinha treze anos e todas as segundas feiras de manhã
me deixava cair no céu daqueles olhos e morria um bocadinho. por isso sabes
até entendo que ontem
ao fim do dia
tu aprendesses que o teu corpo existe. as segundas feiras à tarde só existem para aprendermos a viver o resto dos dias.








histórias de um futuro que hoje vive, sofregamente,
abruptamente, ter medo de morrer num sítio estranho, onde
só existem estrelas e negro, guardar sempre o último fôlego para
depois, olhos abertos. no dia seguinte começar a escrever um novo futuro.






*antónio lobo antunes*


blimunda dixit

Sem comentários: