19 janeiro 2006

3. A Lembrança De Dagmar


Por quê você viveu assim todos esses anos ? Quem lhe disse que em algum dia fomos um único indivíduo ? Pensasse de outra forma e não haveria sofrido tanto, meu querido. A vida é respiração brusca, instinto aborígena que salta da boca estática e vai, petulante, saturar-se na loucura de outros suspiros não menos excepcionais. Começam sempre humildes e condescendentes, depois se transformam, instante seguinte, em fome de facas e ciladas.

Enquanto eu tirava de você a vertigem e a fé, fui deixando afagos verdadeiros mas um pouco retardatários, e que hoje, certamente, se encontram diluídos numa crença esquisita que só a você pertence.

No nosso idioma quem amou deixou a vida fazer-se num traçado de fidelidades. Eu nunca amei você, e você sabe disso, mas também não lhe tive ódio, apenas assombros. Os dias, os anos passados a seu lado me tornaram pequena. Na verdade me transformaram em algo inimaginável para alguém como eu que teve sempre a alma voltada para os riscos. Cada vez que lhe pertencia, mais me afastava dessas coisas. Um açoite. Você não as entendia, nem eu seus desamparos. Talvez devemos isso a debilidade natural dos receios e ansiedades que sempre nos caracterizou. Na súbita busca de permanecer no tempo e fugir dos limites da terra, fomos assegurando nossos segredos. Vê ? Quem disse que em algum momento não fomos uma única pessoa ?

Que você continuasse amando foi sempre o meu desejo. Até para poder comparar as melancolias, nossas cúmplices. Mas para você não arder no mesmo espaço, peço-lhe que procure não entender minhas labaredas. Isto fará que você sofra menos e ponha os olhos nesse coração sacudido entre respirações e soluços. Alguém morreu, pode ser. Mas há muita gente fazendo perguntas semelhantes as suas, mastigando freios e carregando palavras compensatórias. Não percebe, meu amigo, que esse nunca foi meu grito ? Vá lá, da minha blasfêmia, quem sabe você não encontra os vestígios da sua estrada.

Como fui eu quem se desvencilhou, cansada da sua língua e do seu ruído de existir, quem procurou ao longo desse tempo se consertar e se nutrir. Fui sim, e sem remorso algum, executar as crenças que aprendi do mundo. Eu vivo, eu resisto, enquanto os outros preferem aguardar o que vem pela frente. E isso, de alguma maneira, me torna diferente. Resistir é estar adiante, e não me deixa cativa desse invólucro que não permite que separemos ordenação de sonhos. Essa é hoje a minha casa. À força de nunca mais ter que sentir náusea, sou meu próprio esquecimento, meu antepassado. Se estou menos garra é porque fiz nascer em mim outras geografias mais angulosas e menos transparentes. Se a antiga paixão apodreceu em mim é porque dentro da minha garganta outros nomes, outras tardes, outras espessuras quiseram saltar. E eu deixei.

Como desaprendi a ser aquela humana que você um dia conheceu, não sei se devo continuar lhe dizer palavras. Tudo fica muito precário. Abstrato. Depois que fui embora resolvi parar de depor a vida. Porque me tornei farta, não preciso mais surgir à cena com os meus encantamentos. Eu sou a própria volúpia. A extremidade do cio e a saudade de um corpo ao qual você se condena. Eu circulo, próxima as portas entreabertas de homens adverbiais e também esperançosos. Perscruto essa espécie rara que ultimamente vem se desdobrando à minha frente. Ali meus gritos tem cor de sangue e as promessas não são perversas, não sugam nem colam-se futilidades às alturas. Ali eu sou santa e loba e uivo com os olhos pregados no céu das queimadas.

Meu amor, neste outubro dissolvente venho me lembrando de você alguns dias. Mas procure não reacender seu interesse por mim. Este registro é saudoso, acredite, mas descose qualquer uma de suas falas. Se para você é dolorido me ler, saiba que a pena aqui também não se retrai. Mas não é coisa de morte nem partilha seu caminhar. Ainda crendo haver uma desordem nisto tudo, lembre-se que da carne de uma mulher nascem homens, e eu quase lhe pari. Estendi-me ao seu lado como alimento e medida, lhe quis matéria e você, vida. Eis aqui nossa condena. Jamais conseguiríamos saciar essas sedes. Mas você insistiu, e eu lhe penso. Por isso me lembro. E escrevo para lhe dizer que enquanto estive contigo fui um resíduo de transgressão, apenas uma página de lascívia. Água parada, nua, entre os móveis da sala, mas nunca pelas paredes.

Sem nenhuma conexão com seu extremo meus dias ficaram indisciplinados, precisando forjar uma consciência de espera não mais insuportável ou sobrevivente. Movo-me sem meu filho que não saberá que atrevessei o riso e dei em terras mais espessas, e tudo isso sem ele. Meu filho... Acima da demência, rente ao pescoço, triturando-me de explicações cada dia eu intensifico esse susurro. E tem cor, sombra e vestígios de mim. Que um dia ele me poupe desse desperdício.

Deixe-me portanto às devorações das brevidades. A mulher que lhe parecia adequada veio lhe dizer adeus. Das horas atravessando nossa cama também me despeço. Em algum momento eu tive o rosto repleto de rios e pássaros do paraíso. Hoje eu temo que o amor seja feito de alagadiços e instantes jubilosos. Será que o passar de línguas sobre meu ventre murmuram outras voracidades indizíveis ?

Para você, a alma. Para mim, a chaga. Não me culpe, mas sim seus desempenhos. As paredes e o esquecimento enclausurado num corpo que há muito se havia ido. O tempo girando, sustentando o que nos redimia, as águas e o vento que não surgia. Uma eternidade de falsas rimas, e eu, ainda, me perguntando o por que.

Fui infiel. Me rebaixe até onde não possa mais. Me desterre. Na fartura ou na colheita, ou mesmo em torno desse seu novo consumo, me rebaixe. Depois de ter amado a mistura de um outro homem eu ultrapassei essas funduras. Para mim nada mais é abismo nem se acaba com rotas palavras. Eu encontrei o humano, meu querido. Encontrei os atributos dessa catarse que às vezes cega, às vezes se desgasta. Mas é transbordante e avança sempre. O humano vem substituir as cores, tragar, vencer e até fazer distâncias. E se você precisa de chuvas, eu preciso de relâmpagos.

Hoje eu consigo tangê-lo, atribuir-lhe legiões de gostos que certamente não teriam nascido em nossa casa. Posso arbitrar, suceder e penetrar na exaustão das unhas que correm pelos meus cabelos porque a dor não conta mais. Só os espasmos e o desalinho desses ingredientes que exijo do homem que repousa junto a mim. Não são ânsias, mas privilégios. Insaciáveis. Suores nas nucas sinalizando uma bastança que a nada mais se submete.

Suspeito ter morrido pra você antes mesmo que nos conhecessemos. Suspeito ter sido ultrapassada pelos descompassos. Tenho tido noites extremas, mas continuo me tocando. Crescendo no risco e transitando entre vidas que correm à minha frente. Depois que fui embora, depois que amei quem quase me matou de rancor e desencanto, resolvi não cantar mais cotidianos. De certa forma aprendi a me carregar e sobrepor à ausência dos que tentam me encerrar com gestos secos e sobreviventes. Quem me desenha agora sou eu, e os meus tornozelos estão descobertos porque eu quero que fiquem descobertos, e não mais por exaustão de amor.

Alguém sonha comigo, mas antes que eu o encontre me pergunto: não seria mais adequado luzir dentro do meu peito e extrair dele uma série de outros inventos? Já experimentei somas, e foi pouco. Tive encontros subterrâneos que ruiram com o tempo, nenhuma âncora nem homens que se reiventam. Os corpos que possuí estavam em mim, ou quando muito à ponta do meu zelo. Com esta genealogia prefiro mesmo desaparecer e manter-me essência, carne, pêlos e intestino. Porque sempre que sumo, me refaço.

Prometi não me entregar mais aos náufragios. Na verdade às luas masculinas, que arrastam para a sombra seus carregamentos sinistros. Por isso meus dias agora ardem de estremecimento. Cruzo ruas e empurro para longe os sorrisos amarelos, os atos especiais e as demandas que escapam pelos dentes. Passo diante dos homens assim como quem atravessa as manifestações de palavras encadeadas. Fico olhando, fico ouvindo enquanto minha outra metade fita o mundo, a terra e as tardes inundadas de bocas e umidecimentos. Gosto do som de homens que se molham com essas coisas.

Assim está minha vida. Não era isso que procurava saber ? Se quiser me perguntar também como estou lhe digo: vou sucedendo. Talvez não consiga lhe explicar a natureza dessa jornada. E como nunca lhe jurei nada, juro agora pra você que sem nenhum ressentimento. Fui mergulhando cada vez mais fundo neste encanto necessário, ora me perguntando se era gemido que precisava, ora se pausa para dispersar as coisas que me atormentavam. Fiquei sozinha, sem que ninguém soubesse. E foi este segredo que alimentou meu silêncio. Tenho bons amigos, com alguns até me deito. Tenho gozado, mas não me prostituí como supõe meu pai. Pulso, sem precisar fazer nada urgentemente. E me concentro quando tudo parece perdido.

Agora paro de lhe escrever. Uma vez ou outra, sempre mais raramente vou continuar a fazê-lo. Não que eu queira deixar tudo sempre em suspenso, mas é que eu preciso às vezes me lembrar como se fazem parcos, irreais, os traçados que impomos à vida. Tocar a boca ? Só se for úmida e cheia de sobrevida. Devo estar com saudade de mim, e isso não se conjuga apenas à carne, mas também à caminhadas.




Ilidio Soares dixit

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